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O Pensamento vivo de Buda

Por Ananda Coomaraswamy (s/d) Martins: São Paulo

Abreviações:
A. - Angutara – Nikaya; AA. - Comentário do Angutara; BG. – Baghavadgita; BU. - Brhadaranyaka – Upanishad; Com. – Comentário; D. - Digha – Nikaya; DA. - Comentário do Digha; Dh. – Dhammapada; E.R.E. - Enciclopédia da Religião e da Ética; G.S. - Gradual Sayings; HJAS. - Harvard journal of Asiatic Studies; It. – Itivuttaka; ItA. - Comentário do Itivuttaka; J. – Jataka; K.S. - Kindred Sayings; M. - Mojjhima – Nikaya; MA. - Comentário do Mojjhima; Mil. – Milindapanha; Min. Anth. - Minor Anthologics of the Pali Canon; S. - Samyutta Nikaya; SA. - Comentário do Samyutta; Sn. – Suttanipata; Ud. – Udana; Uda. - Comentário do Udana; Up. – Upanishad; Vin. - Vinaya – Pitaka; Vism. - Visuddhimagga
As referências às obras em Páli dizem respeito às edições da Pali Text Society, exceto no caso da Vinaya e da Jataka. [introdução omitida]

Querer dar uma idéia adequada do conteúdo da doutrina budista nos seus primórdios é uma tarefa que apresenta dificuldades quase insuperáveis. Esta Lei Eterna (dhamma ,sanatana, akãlika), que não era de modo algum uma criação intelectual de Buda por raciocínio, mas à qual êle se identificava, uma Lei ensinada por seus predecessores num passado remoto e que seria ainda ensinada por seus sucessores no futuro, o próprio Buda a declara profunda e difícil de compreender por ouvintes que tenham outra mentalidade e uma outra formação de espírito; é uma doutrina para aquêles que tenham poucas necessidades, não para aquêles que tenham muitas. Durante a sua vida e reiteradas vêzes, Buda teve necessidade de corrigir as falsas interpretações de seu ensinamento; de explicar, por exemplo, em que sentido preciso era ou não era uma doutrina de "extirpação"; ela o era no sentido que era preciso "suprimir" o egoísmo, o mal e a dor; e não o era no sentido do aniquilamento de uma realidade. Aliás, o que êle ensinava era o aniquilamento de si mesmo: aquêle que quiser a liberdade deve-se ter literalmente renunciado; para o resíduo, os têrmos da lógica do dilema "ou isto ou aquilo", não são adequados; mas seria totalmente impróprio dizer-se do Arahant que "expirou" libertado pela sua hipergnose, que "êle não sabe nem vê" (D. II, 68).
Se os erros já eram possíveis em vida de Buda, quando, como êle o disse, acabava de reabrir um Caminho antigo há muito desprezado e obliterado por uma falsa doutrina, quanto mais inevitáveis não serão as interpretações errôneas em nosso século de progresso, de expressão individualista, de busca incessante de um nível mais elevado de vida material? Quase todos nós, salvo alguns teólogos de profissão, esquecemos que uma realidade suprema não poderia ser convenientemente definida a não ser por uma série de negações, dizendo-se somente o que ela não é. De qualquer maneira, como o fazia notar ainda Miss Horner em 1938, o estudo do budismo primitivo está ainda começando a balbuciar (Livro da Disciplina, I, VI). Se o leitor encara o budismo como um caminho de evasão (no que não estará cometendo um êrro) pode ainda se perguntar a que êle se aplica, de onde parte e aonde vai êste caminho de evasão de que se nos afirma que "existe neste mundo" (S. I, 128).

O que agrava as dificuldades, são os erros de interpretação que se encontram ainda, mesmo nas obras dos eruditos. Um dos mais autorizados, por exemplo, não compreendeu que é preciso distinguir o "porvir" cuja cessação coincide com a obtenção da imortalidade, do "porvir provocado" na parte imortal de nosso ser. De fato, o "porvir" não é outra coisa que aquilo que hoje chamamos o progresso sem levar em conta o fato de que a transformação pode ser para melhor ou para pior; e não devemos esquecer que hoje, como então, "há deuses e homens que se comprazem com o porvir, e quando se lhes fala em fazer cessar o porvir, seus espíritos não são atraídos" (Vis. 594). Outro grande erudito afirma que o budismo primitivo "negava um Deus, negava uma Alma, negava a Eternidade" e se pretende, quase em tôda parte que, segundo Buda, não existe o Eu. Não se observa, portanto, que o que Buda negou foi a realidade do Ego sempre variável, da "individualidade" psicofísica; o que êle disse do Eu, do Descobridor da Verdade ou do "Assim vindo", do Homem Perfeito, depois da morte, é que nenhuma das expressões "vir a ser", "não vir a ser", "vem a ser e não vem a ser", "nem vem a ser nem não vem a ser", pode se aplicar a ele ou a êste qualquer coisa (A. IV, 384 sego, 400-401; Ud. 67, etc.) Ou então ouvimos freqüentemente afirmar que o budismo é uma doutrina "pessimista", a despeito do fato que o fim que êle nos propõe - a libertação de todos os sofrimentos mentais aos quais o homem está sujeito - é um fim que se pode atingir neste mundo e desde agora. É pelo menos não querer reconhecer que uma doutrina só se julga pelo fato de ela ser verdadeira ou falsa, não por ela nos agradar ou não. A primeira preocupação de Buda, é o problema do mal no que se refere ao sofrimento ou dor (dukkha); em outras. palavras, aquilo que é corruptível de tudo o que é nascido, composto, mutável; sua sujeição ao sofrimento, à doença, ao- envelhecimento e à morte. Que esta sujeição é um fato (3), que ela tenha uma causa, que esta causa por ser suprimida; que exista um Caminho, um Trilhar, uma Viagem que- permita suprimi-Ia, eis as "Quatro Verdades Arianas" que são o comêço da sabedoria. "Tanto no presente como até agora eu só ensino isto, a origem e o fim do mal" (M. I. 140). Resulta daí, que o budismo pode ser reduzido (e o é freqüentemente) a simples fórmulas de "origem causal (pattica samuppãda) : "Isto sendo assim, aquilo vem a ser; isto não sendo assim, aquilo não vem a ser". Devido à operação sem início das causas mediatas, é impossível evitar qualquer de seus efeitos complexos; a evasão não é possível a não ser no- domínio onde opera a eficiência causal das ações passadas (kamma) e somente a respeito do que jamais fêz parte integrante dêste domínio.
[3.Toda a raça humana é tão miserável e acima de tudo tão cega, que não tem consciência de suas próprias misérias. (Comenius, Labirinto do mundo e Paraíso do Coração, c. XXVlll). É precisamente devido a esta cegueira que Buda hesitou em pregar o Dhamma a homens cujos olhos estão cobertos de pó].

Se a doutrina budista pode-se reduzir ao enunciado da lei da causalidade, é devido à incidência direta desta lei sôbre o problema da mutabilidade e da corruptibilidade: se podemos suprimir a causa do sofrimento, não teremos mais de- nos inquietar com seus sintomas. No ciclo ou no turbilhão do porvir (bhava-cakka sansãra), são inevitáveis a instabilidade, o envelhecimento e a morte de tudo o que teve um início é viver ou "vir a ser" é função da sensação; sentir é função do desejo (tanhá, sêde); desejar é função da ingorância (avijjã = moha, ilusão). A ignorância, origem última de todo o sofrimento e de tôda a escravidão, de todos os estados patológicos de- submissão ao prazer e à dor, (4) pertence à verdadeira natureza das coisas "que ainda estão por vir" (yathã - bhütam) e participa em particular de sua inconstância (annicam). Tudo o que vem a ser é mortal; quem conseguiu pôr têrmo ao porvir, não mais está submetido ao movimento, será daí por diante, imortal. Isto nos interessa profundamente; o mais perigoso aspecto da ignorância - o verdadeiro pecado original - é aquêle que nos faz acreditar que "nós mesmos" somos verdadeiramente isto ou aquilo, e que podemos sobreviver numa espécie de identidade, de um instante ao instante seguinte, de um dia a outro, de uma vida a outra.
[4."A ignorância é a submissão ao prazer e à dor...é ceder a si mesmo". Platão, Protágoras, 356-357].
É por isso que o budismo não conhece a "reencarnação. no sentido vulgar e animista do têrmo; mas muitos "se enganam ainda pensando que o budismo ensina a Transmigração das almas" (SBE. XXXVI 142; Diálogos, II, 43). Do mesmo modo que um Platão, Santo Agostinho e Mestre Eckahrt, também aqui tôda a mudança é um processo de morte e de renascimento na continuidade, mas sem identidade. Não existe uma entidade permanente (satto) que se possa imaginar passando de uma encarnação a outra (Mil. 72) à maneira de um homem que deixasse sua casa ou sua aldeia, para entrar em outra (Pv. IV, 3). Pode-se mesmo dizer que a noção de uma "entidade" como a noção do "eu", se se deseja aplicá-Ia a uma coisa existente, é puramente convencional (S. I, 135) e que êste mundo nenhum exemplo nos oferece (Mil 268). O que vemos parecer e surgir de nôvo "não sem se ter tornado outra" é uma individualidade (nãma-rupa) (Mil. 98), uma consciência discernente (vinnãna), herdeira das "obras" da outra (M. I, 390; A. III, 73). Buda bem pode ter dito que existem certamente agentes pessoais (A. III, 337 - 338); mas não se depreende, como o supunha a Sra. Rhys Davids, que ""a doutrina da annatã seja reduzida ao nada" (GS. III, XVIII). A posição do budismo é exatamente a do bramanismo: "Eu não sou o agente do que quer que seja; são os sentidos que se movem entre os seus objetos"; tal é a opinião do homem reprimido, daquele que conhece a "Ipseidade" (BG. v, 89; XVIll, 16-17). Certamente, o indivíduo é responsável por suas ações, herdará de suas conseqüências, tanto que se imaginará que êle mesmo é o agente; e ninguém é mais repreensível do -que aquêle que declara: "Não sou eu quem o fêz" enquanto êle ainda está enredado na atividade (Ud. 45; Dh. 306; Sn. 601) ou aquêle que alega que o que êle fêz tem pouca importância nem em bem nem em mal (D. I, 53). Mas acreditar que eu sou o agente, ou que outrem é o agente, que eu ou outrem colheremos o que semeamos, é passar ao lado da verdade (Ud. 70); não existe um "eu" que age ou que herda (S. II, 252), ou para falar mais corretamente, a questão da existência real de um agente pessoal não poderia ser re- solvida por um simples sim ou um simples não, mas somente cm têrmos de origem causal em conformidade com o Caminho do meio (S. II, 19-20). Mas tôdas estas "entidades" compostas que têm uma origem causal são precisamente coisas que se analisam inutilmente e que sempre se verifica não serem o "meu Eu"; neste último sentido (para matthikena), êste ou outrem não constituem o agente. É somente depois de ter perfeitamente compreendido e verificado esta proposição que nos será permitido negar que nossas ações sejam nossas; até Já, haverá coisas que devemos fazer, e coisas que não devemos fazer (Vin. I, 233; A. I, 62; D. I, 115).

Na doutrina da causalidade (hetuvãda), como na do efeito causal das ações (kamma) não há nada que implique necessariamente uma "reencarnação" das almas. A doutrina da causalidade é comum ao budismo e ao cristianismo; tanto uma como a outra religião declaram explicitamente crer numa seqüência ordenada dos acontecimentos. Esta "reencarnação" da qual o budista quereria ser desembaraçado não é o acidente de uma morte particular ou de um renascimento particular esperado para o futuro; é todo o vertiginoso processo de morrer e de renascer muitas vêzes que caracteriza igualmente a existência neste mundo da condição humana e a existência no além, durante a eternidade, da condição divina (de um deus entre muitos outros). O Arahant realizado está por demais prevenido para perguntar: "Quem fui no passado? Quem sou no presente? Quem serei no futuro (S. II, 26-27). Para comodidade usual, êle se pode servir da palavra "Eu" sem deixar entender de qualquer maneira que a noção "Eu" ou "me" comporta no espírito do animista (D. I, 202; S. I, 14-15). O tempo implica o movimento, o movimento a mudança de lugar; em outros têrmos a duração traz consigo a mutação, o porvir. É por isso que a imortalidade considerada pelo budista, não está no tempo nem no espaço, mas é independente de tempo e de lugar. Para empregar têrmos pragmáticos da linguagem corrente, os quais só se aplicam às coisas que têm um princípio, um desenvolvimento e um fim (D. II, 63) poderemos dizer do Ego: "Outrora foi, depois deixou de ser; outrora não foi, depois foi; mas em têrmos verdadeiros: "ele não foi; não será e não é atualmente: êle não é e não será "meu" (Ud. 66, Th. I, 180). O turbilhão, a roda do porvir budista não é outra coisa que dtrokoz thz Uenesevz de S. Tiago: O Ego é para o budista uma não-realidade como para Platão e Plutarco pelo próprio motivo de sua mutabilidade. A gaiola do esquilo gira, mas “isto não sou eu" e na verdade existe um meio de fugir à sua revolução.

O mal para o qual Buda buscava um remédio é o da miséria que provém da corruptibilidade de tudo, o que é nascido, composto e inconstante. O sofrimento, a mutabilidade, a não-ipseidade (5) (dukkha, annica, anattã) são característicos de tôdas as coisas compostas, de tudo o que não é Ipseidade; e de tôdas estas coisas o Ego, o "eu", o “si mesmo" (aham, attã) e a espécie ou a imagem exata, uma vez que é o fim do homem que nos ocupa. É um axioma que toda a existência (6) (S. II, 101. etc.) se mantém pelo alimento material ou mental, como o fogo se nutre de combustível; é neste sentido que o mundo está em fogo e que nós queimamos. Os fogos da consciência do ego, da egoeidade, são os do desejo (rãga = kamma, tanhá, lobha), do ressentimento e da cólera (dosa = Kodha), e da ilusão ou ignorância (moha = avijjá). Estes fogos só se apagam pelos seus contrários (A. IV, 445; Dh. 5, 223), pela prática das virtudes correspondentes, pela aquisição do saber (vijiã ); em outros têrmos, êles não cessam de “puxar", ou com precisão, êles só se "apagam" quando lhes falta o combustível. É esta "extinção" que se chama o "expirar" (nibbãna = sansc. nirodna) e que se encontra naturalmente associado à idéia de um "refrescar".
[5.Em todas as filosofias tradicionais que assentam como axioma que há em nós uma dualidade é de rigor distinguir o grande Eu, a Ipseidade, do "eu" ou Ego, o sábio", por assim dizer, do "entendido". Na nossa exposição, a não-ipseidade coincide com a egocidade (self-isness) ; dizer "não-eu (unselfihenss) teria sido exprimir exatamente o contrário. É da Ipseidade somente que uma não-egocidade ontológica, e conseqüentemente, um não-eu ético, podem ser atributos. No momento, apenas discutimos o ego, o "eu"; a questão da Ipseidade no budismo, será tratada adiante].
[6.Existência oposta ao "ser", como esse à essência].

O Nirvâna (para empregar a forma da palavra mais familiar aos europeus) é um têrmo fundamental da terminologia budista, e sem dúvida o mais mal compreendido de todos. (7) O Nirvâna é uma morte, um fim (no duplo sentido de estar "terminada" e “aperfeiçoada"). Tomada no passivo, tem todas as acepções das palavras gregas telev, oposJenmi e as de vukv (refrescar). O Nirvâna não é nem um lugar nem um efeito; êle não está no tempo, êle não se obtém por quaisquer meios; portanto é e pode ser “visto". Os "meios" empregados na prática não são em si os meios de se atingir o Nirvâna, mas meios de afastar tudo o que perturba nossa “visão" do Nirvâna, da mesma forma que um candeeiro trazido numa sala obscura nos permite ver o que aí já se encontra. Compreendemos agora porque o "eu" (attã) deve ser domado, vencido, refreado, rejeitado, e pôsto fora de atividade. O Arahant, o Homem Perfeito, é aquêle cujo "eu" é domado (atta-danto), cujo “eu" foi despojado (atta- jaho); seu fardo foi deposto (ohitabharo); o que tinha a fazer, foi feito (khatam-karaniyam), A êle são aplicáveis todos os epítetos dados ao próprio Buda, que não tem mais qualquer nome pessoal; (8) é "liberto" (vimutto); é extinto (nibutto); para êle não há mais porvir: obteve o repouso da fadiga (yoga-k-kheman); é "desperto" (buddho) - epíteto que se aplica a todo Arahant e não somente a Buda, por excelência - é imutável (anejo); é "Ariano"; não é mais um discípulo (sekko), é um Mestre (asekho).
[7.É legitimo de o traduzir por "extinção", como se diria de um fogo mas "aniquilamento" falseia as idéias. Para os hindus um fogo que se apaga não "sai", como em inglês (going out); "entra" (going In)].
[8.Gotama não é um nome pessoal, é um nome de família, e o próprio Ãnanda é também um Gotâmida].

O egoísmo (mamattam, “possessividade"; meccheram "mau comportamento", “lei dos tubarões") é um mal, e por conseqüência o "eu" só se doma por uma disciplina moral, Mas o egoísmo (selfishness) é mantido pela “egocidade”- self-isness (asmimana, anatam attã ditthi), e simples mandamentos serão pouco eficazes enquanto não tivermos destruído a opinião errônea que "isto, sou eu". Pois o “eu" quer sempre se afirmar; só depois de têrmos descoberto perfeitamente a verdadeira natureza dêste “eu" inconstante é que deveremos nos pôr a combater nosso pior inimigo, e dêle fazer nosso servidor e nosso aliado. O primeiro passo será conhecer nossa situação, o segundo, desmascarar o "eu" que ficará então desobrigado conosco; o terceiro agir em conseqüência, Mas tudo isso não é fácil; estaremos muito pouco dispostos a nos mortificar antes de ter medido os agregados do desejo em seu verdadeiro valor, antes de ter aprendido a distinguir nossa Ipseidade e seus verdadeiros interêsses do nosso ego, nosso "eu" e seus interêsses. O mal fundamental é a ignorância; é pela verdade que o eu poderá ser efetivamente domado (S. I, 168). Somente"a Verdade vos libertará". O remédio para o amor do eu (attakãma) é o Amor do Eu (Ipseidade) (attakãma) e é precisamente neste sentido, para servimo-nos dos têrmos de Santo Tomás de Aquino, que por caridade, o homem deve-se amar a si mesmo mais do que a qualquer outra pessoa mais que o seu próximo (Sum. Theol. ll, 26, 4). E em têrmos budistas: "Que ninguém comprometa seus próprios interêsses pelo bem de outrem, por maior que êle possa ser: se se conhecesse bem o verdadeiro interêsse do Eu, seria a êste fim que se deveria visar" (Dh. 166). Em outros têrmos, o primeiro dever do homem é de realizar sua própria salvação a partir de si mesmo.

É necessário proceder analiticamente, como se nos é explicado várias vêzes a propósito da "não-ipseidade" (anattã) de todos os fenômenos. O que é necessário repudiar, é o que hoje chamar-se-ia de "animismo". O mecanismo psicofísico que reage não é um "Eu"; está desprovido (sunna) de toda propriedade de Ipseidade. O ego, consciência ou existência ou existência "individual" (attasambhãva) é um composto do cinco fundamentos (dhãtu) associados ou de cinco ramificações (khandha), a saber o corpo visível (rupa kãya) a sensação invisível (vedana, agradável, desagradável ou neutra); o reconhecimento ou consciência (sanna); as construções, isto é, o caráter (samkhãrã); (9) enfim a discriminação, o discernimento, o julgamento, a apreciação (vinnana): (10) em resumo, é um composto do corpo e da consciência discernente (savinnãnaka-kãya), é a existência psicofísica. Demonstra-se por todos êstes fatôres sua origem causal, sua variabilidade, seu caráter perecível; não são "nosso" uma vez que não podemos dizer "que sejam (ou: nós mesmos sejamos) assim ou assim" (S. m, 66-67): não podemos constatar que êles "vêm a ser", o que nós "vimos a ser": somos apenas uma entidade biológica, movida por impulsos hereditários. (11). A demonstração termina sempre por estas palavras: "Aquilo não é meu, eu não sou aquilo, aquilo não é a minha Ipseidade". Se disto vos libertais para sempre, se renuncias totalmente às noções do "eu sou Fulano', "eu sou o agente", "eu sou", será "vosso benefício e vossa felicidade" (S. III, 34). Buda, qualquer Arahant, são os "Nemo", seria fútil seu nome.
[9.Samkhãrã (uonapitok, ounQeidi) a palavra se aplica aqui às representações mentais, imaginações, noções, postulados, complexos, opiniões, preconceitos, convicções ideologias, etc. Num sentido mais geral, samkhãrã denota tudo o que pode ser designado por um nome ou percebido pelos sentidos, isto é, todo nãmarupa: todos os objetos inclusive nós mesmos].
[10. Os cinco Khandhas se assemelham muito às cinco "faculdades da alma" de Aristóteles (Do An. II, III) e de Santo Tomás de Aquino (Sum. Theol. I, 78, I) a saber: vegetativa (nutritiva), sensível, apetitiva, intelectual, matriz (diagnóstica e crítica)].
[11. L. Paul, The Annihilation of man, 1945, p. 156].

Em outras palavras, toda coisa, toda individualidade é caracterizada pelo "nome e forma" (nãma - rupa = dlogo kai h morg , Aristóteles, Met. VIII, I, 6); o "nome" se aplica aos componentes invisíveis da individualidade; a "forma"" ou "corpo" (pois rüpa pode ser substituído por hãya) a seus componentes visíveis e sensíveis. O que significa que "o tempo e o espaço são as formas fundamentais de nossa com- preensão de tudo o que se modifica; a forma (ou corpo) de toda a coisa está sujeita a desaparecer: seu nome permanece, e por seu nome temos ainda uma ligação com ela. É devido a seus "nomes", "a lei", "a Verdade" que o Desperto sobrevive neste mundo, se bem que êle mesmo, igual ao rio que atinge o oceano, seja liberto do "nome e da forma": aquêle que é "merso nêle" não mais faz parte de nenhuma categoria, não é mais isto ou aquilo, não está mais aqui ou lá (Sn. 1074).
Tudo isso não é particularmente budista; é a substância de uma filosofia mundial, para a qual a salvação consiste essencialmente em salvar o homem de si mesmo: Deneget seipsum! Si quis...non odit animam suam, non potest mem discipulus esse!
"A alma é vosso maior inimigo". (12) "Se não tivesse seus empecilhos, quem ousaria dizer "sou eu". (13) O eu é a raiz, a árvore e os ramos de todos os males de nossa queda. (14) "é impossível captar duas vêzes a essência de qualquer coisa mortal... num único e mesmo instante ela chega e se dissipa". (15) Poder-se-ia multiplicar as citações dêste gênero. O que menos se sabe, é que muitos naturalistas e psicólogos modernos chegaram às mesmas conclusões.
[12. AI Ghazãli. AI - RisaItal Laduníyya, cap. II].
[13. Rumi: Mathnawat, I, 2549].
[14.W. Law Hobhouse, pág. 219].
[15. Timeu, 28 A. Cf. Crátilo, 440. Plutarco, Moralia 392 B. Para a doutrina budista do "instante" (khana ) em que as coisas nascem, amadurecem e chegam ao fim, ver Vis, I, 329, e os desenvolvimentos da idéia nos textos mahâyânicos].

"O naturalista sustenta que os estados e os fatos ditos mentais existem somente onde se encontram certas organizações de coisas físicas...(e) que êles não são apresentados por estas coisas enquanto elas não são assim organizadas. O objeto -organizado só faz manifestar as reações de seus componentes...(êle) não é um elemento adicional que... dirige...as reações de suas partes organizadas", Até lá, é de modo idêntico que o naturalista e o budista interpretam .as reações do "objeto organizado", mas o primeiro se identifica ao objeto que reage, (16) enquanto que o budista .assegura que não há objeto que eu possa chamar "meu Eu", Ao contrário os psicólogos, por uma extrapolação do ego, fazem ainda, como os budistas que encaram a possibilidade -de alguma outra coisa que o ego, que sofrer uma "beatitude infinita". "Se constatamos que tudo é fluido, constatar-se-á -que a individualidade e a falsidade são apenas uma única e mesma coisa"; donde êste corolário como na doutrina do annatã, que "nós" somos diversos da nossa individualidade, "Nesta individualidade de cada um de nós, êste "eu" que é tradicional (isto é, habitual) colocarmos em evidência... temos a mãe de todas as ilusões; o drama desta ilusão da individualidade é que ela conduz ao isolamento, ao temor, à suspeita quase paranóica, a ódios absolutamente inúteis". Cada um seria infinitamente mais feliz se aceitasse a perda de seu "eu individual e, como o diz Buda, não teria mais preocupações com aquilo que não tem realidade". Na época do racionalismo científico, que se tornara a psique? A palavra se tomara sinônimo de consciência... não havia psique fora do ego. Quando o destino da Europa a fizera participar de uma guerra de quatro anos de um horror sem igual...ninguém compreendeu que o homem europeu estava possuído por alguma coisa que o despojava de seu livre-arbítrio."Mas, além, e acima dêste ego, há uma Ipseidade" em tôrno da qual êle gira, mais ou menos como a Terra gira em tôrno do Sol"; todavia, "desta relação nada não é conhecível intelectualmente, porque nada podemos dizer do conteúdo da Ipseidade". (17) Da Ipseidade, que nos diz o Budismo - "Isso não é meu Eu" (na me so attã); palavra que, com a expressão "não - Ipseidade" (anattã) servindo para qualificar o mundo e todas as "coisas" (sabbe dhammã anattã), (18) está na base da opinião errônea que o budismo "nega (não somente o eu mas também) o Eu". Mas basta considerar os têrmos em boa lógica para se perceber que êles implicam a realidade de um Eu, o qual não é nem uma parte nem a totalidade das "coisas" que se declara não lhe atribuir. Como o diz Santo Tomás de Aquino, "As coisas primárias e simples são definidas por negações: um ponto, por exemplo, se define "o que não tem partes". Dante faz notar que há "coisas que o nosso intelecto não poderia contemplar... só podemos compreender sua natureza formulando negações a seu respeito". Era também a atitude da antiga filosofia hindu no seio da qual o budismo nasceu: qualquer coisa que se possa dizer do Eu, não é assim Reconhecer que "nada de verdadeiro poderia ser afirmado a respeito de Deus", não é certamente negar sua essência!
[16. Identificação que volta à proposição animista: “Penso, logo existo”, e implica o conceito ininteligível de um úrjco agente que pode querer coisas contrárias num único e mesmo momento. Pareceria que, para permanecer lógico, o positivista devesse negar a possibilidade de tôda a direção de si mesmo; é talvez o caso].
[17 Os naturalistas e os psicólogos que acabamos de citar são: Dewey, Hooke e Vagel; Charles Pierce, H. S, Sullimam, E. E, Haddley, C. J. Jung. Vê-se que êste último, que fala da "necessidade absoluta de dar um passo além da ciência" é metafísico sem o querer. Não damos estas citações para provar a exatidão da análise budista, mas com o único intuito que o leitor possa compreender melhor esta última: O provérbio inglês diz: "é comendo o "pudding" que se sabe se êle é bom"].

Quando se insiste na questão "Existe um Eu?" Buda recusa responder sim ou não. Dizer sim seria participar do êrro "eternalista"; dizer não, do êrro "aniquilacionista" (A. IV, 400-401). Da mesma forma, quando surge a questão do destino no além de um Buda, um Arahant, do Homem em Si, êle responde que não se lhe poderia aplicar qualquer dos têrmos "torna-se" (hoti) ou "não se torna"; nem se torna, nem não se torna; "torna-se ao mesmo tempo que não se torna". Pois qualquer uma destas proposições implicaria a identificação de Buda com tudo ou parte dos cinco fatores da personalidade; todo porvir implica uma modalidade: ora, Buda é exterior a todo o modo. É preciso notar que a questão está sempre redigida em têrmos de "provir", não de ser. A lógica da linguagem só se aplica às coisas fenomênicas (D. II, 63) : Ora, o Arahant não está contaminado por nenhuma destas "coisas"; não há expressões verbais para aquêle cujo eu não mais existe; aquêle que se "recolheu em si mesmo" (19) não mais se encontra em nenhuma categoria (Sn. 1074, 1076). Todavia afirma-se ainda que Buda "é" (atthi), se bem que êle não seja visível aqui ou lá; e nega-se que um Arahant "não seja" além da morte. Mas se verdadeiramente não fica absolutamente nada quando o eu não existe mais, somos forçados a nos perguntar de que uma imortalidade poderia ser o atributo? Querer reduzir uma realidade à nulidade do "filho da mulher estéril" só conduz ao absurdo, ou ao ininteligível; aliás Buda, repudiando as doutrinas "aniquilacionistas" que heréticos de seu tempo lhe atribuíam, nega expressamente ter jamais ensinado a destruição de nada de real (roto sattasa = onvtj oi) (M. I, 137, 140). "Bem que existe, diz êle, um não-nascido, não-tomado, não-feito (akatam) (20) não composto (asamkhatam) (21) e, se não existisse, não haveria evasão possível para o que é nascido, tomado, feito e composto (isto é, do mundo) (Vd. 80) "Tu és o Conhecedor daquilo que jamais foi feito (akatannü) , ó Brahman, tendo conhecido o declínio de tôdas as coisas compostas".
[18. Idêntico àquela do bramismo: "Dos que são mortais não existe o Eu" (anãtmã há martyah). (SB. II. 2, 2-3)].
[19. Atham-gato é um excelente exemplo das numerosas ambigüidades etimológicas apresentadas pelo pálio No caso attham - sansc. astam, o sentido é aquêle de "regressado a casa", mas no caso atham - sansc. ar- é preciso entender "tendo realizado seu desígnio, atingido sua finalidade". Uma ambigüidade dêste gênero não é um transtôrno, uma vez que "recolher-se a si mesmo" e "atingir seu fim" vem a dar do mesmo].
[20. O "mundo não feito" (Brahmaloka) dos Upanishads].
[21. "Incomposto", isto é, sem origem, desenvolvimento ou mutação (A. I, 152); o Nirvâna (Mil. 270); o Dhama (S. IV, 359). Por outra parte, os "estados" contemplativos, mesmo os mais elevados, são compostos: e é dêstes próprios estados sublimes que existe uma evasão derradeira].

Buda afirma que êle "nada dissimula", que êle não estabelece uma distinção entre o interior e o exterior, que "sua mão não está fechada" (D. II, 100). Mas a Lei Eterna e o Nirvâna são "não-compostos" e por êste valor transcedente (paramattha) não existem palavras adequadas: “all' alta fantasia qui manco posro” (Dante, Paraíso XXXIII, 742); isto será objeto da fé (saddhã) do discípulo até que disto êle tenha experiência, até que o conhecimento venha substituir a Fé. "Aquêle cujo espírito está abrasado com o desejo do Indizível (anakkhãtã), êsse está liberto de todos os amôres, nada contra a corrente (Dh. 218). Os Budas só fazem proclamar "a Via" (Dh. 276). Se pode ter uma salvação pela fé (Sn. 1146), é porque “é a fé que conduz o melhor ao conhecimento" (S. IV, 298): crede ut inteligas. Quem diz fé diz autoridade; a autoridade de Buda (mahãpadesa) que repousa sôbre sua experiência imediata e àquela de suas palavras tais como êle as pronunciou, ou tais como foram narradas pelos monges-mendicantes competentes; neste último caso, elas não somente foram corretamente compreendidas, mas ainda verificadas, quanto à sua conformidade com os textos canônicos e a regra. Esta dependência da etapa inicial sôbre o que ainda não foi "visto" não é exclusivamente budista e não exige uma particular credulidade. A matéria do ensinamento de Buda é sempre o que êle afirma ter visto e verificado pessoalmente: e isso, êle assegura a seus discípulos que êles também poderão ver e verificar se êles o seguirem na sua viagem com Brahma. "Os Budas apenas indicam o Caminho; cabe a vós fatigar-se com a tarefa" (Dh. 276); o Fim permanece indizível (Dh. 218); êle não possui sinal (S. I, 188, Sn. 342); é uma gnose que não é comunicável (A. III, 444); aquêles que só confiam no que pode ser dito estão ainda sob êste jugo da morte (S. I, 11).
Quando se discute a questão da Fé, esquece-se demasiadamente que nosso conhecimento das "coisas", mesmo as que regem nossos atos mundanos, está na maior parte baseado na autoridade. Pode-se dizer que a maioria de nossas atividades diárias cessaria se deixássemos de acreditar nas palavras daqueles que viram o que ainda não vimos, mas que poderíamos ver fazendo o que êles fizeram, indo onde êles foram: do mesmo modo as atividades do neófito budista terminariam se êle não "acreditasse" nesta finalidade que êle ainda não atingiu. De fato, êle acredita que Buda lhe disse o que é verdadeiro, e age em conseqüência (D. ll, 93). Somente o Homem Perfeito é "sem fé" pois nêle o conhecimento do Não-feito substituiu a Fé (Dh. 97) e esta não mais lhe é útil. Para o budista, o Dhamma, a Lex Aeterna, sinônimo da Verdade (22) (5. I, 169) é a autoridade suprema, o -Rei dos reis" (A. I, 109; m, 149). É com esta última autoridade, fora do tempo e temporal ao mesmo tempo, transcendente e imanente, que Buda se identifica, identifica a Ipseidade na qual êle se refugiou: “Aquêle que vê o Dhamma me vê, aquêle que me vê, vê o Dhamma" (S. III. 120; it. qi; Mil. 73). Entre as escrituras budistas, uma das mais grandiosas é intitulada o Dhammapadas "as Marcas da Lei"; um itinerário, um guia para aquêles que "marcham na Via da Lei" (dhammacariyam caranti), a qual é também a (Via de Brahma", "a viagem com Brahma" (brahmacariyam), -a antiga estrada que seguiram os Todo-Despertos de outrora". Os termos budistas para dizer a "vereda" (magga) e a "busca" (gavesana) (23) da qual Ipseidade é o objeto (Vin. I, 23; Vis. 393), indicam implicitamente que é necessário seguir uma pista, nas marcas. (24) Mas estas pistas terminam quando a margem do Grande Mar é atingida. O monge-mendicante que era até então um discípulo (sekho) é daí por diante um perito (asekho); não está mais sob a direção de um preceptor (Gal. III, 25). A Via prescrita é a do aniquilamento do eu, da virtude, da contemplação; é necessário caminhar sozinho com Brahma; mas uma vez atingido o fim desta longa estrada quer seja neste mundo quer no outro, nada mais resta que o mergulho" no Imortal, no Nirvâna ( mat' ogadham, nibbãn'ogadham), neste oceano insondável que é ao mesmo tempo a imagem do Nirvâna, do Dhama e do próprio Buda (M. I, 488,494; S. IV, 179, 180; v, 47; Mil. 319, 346). É uma velha comparação, comum aos Upanishads e ao budismo: quando os rios atingem o mar, perdem nome e forma só se fala do "mar". A vocação monástica é já uma prefiguração dêste fim; semelhantes aos rios que atingem o mar, os homens de tôda a casta que se tomaram monges-mendicantes não mais são designados pelo seu antigo nome ou sua antiga linhagem: pertencem somente à linhagem daqueles que procuram a Verdade e a encontraram (Dh. 239).
[22. “Uma lei superior a nossos espíritos, chamada Verdade", Santo Agostinho, De Vera Relig. XXX, Cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Theol. 1-11, 91-2].
[23. Cf. a história de Gavesin, adiante].
[24. Como em Platão, zkueuv, passim, ou em Mestre Eckart, alma seguindo a pista de sua prêsa, o Criton].

“A gôta de orvalho desliza para o mar resplandecente". Sim, mas a fórmula não é exclusivamente budista: nós a encontramos em Rümi (Nicholson, Divã, xn, XV; Mathmawi, passim), em Dante (sua voluntate...e quel mare aI qual tutto si muove (Par. III, 84), em Mestre Eckhart (also sich wandelte der Tropfe in das Meer..."o mar da insondável natureza de Deus: mergulha dentro, é o afogamento"), em Angelus Silesius (wenn Du das Trópflein weisz im grossen Meere nennen, denn weisz Du meine Seel'im grossen Gott erkennen, [Christl. Wandersmann, ll, 25]) e também na China, onde o Tao é o oceano ao qual tudo regressa (Tao-te king, XXXII). De todos os que o atingem pode-se somente dizer que sua vida é oculta, enigmática. Buda, que cada um o pode ver presente em carne e osso é desde agora "impossível de atingir" (anupalabhyamámo); não é mais" descobrível" (ananu vejjo); um ser assim "mergulhado em si mesmo" não poderia mais ser relacionado a qualquer categoria (sankh mana upeti [Sn. 1074]). Pois, "não há ninguém, que me vendo sob uma forma qualquer, possa me ver"; "nome e aspecto não me pertencem". "Somente aquêle que vê a Lei Eterna, vê Buda, hoje mesmo tão efetivamente que quando o Mestre estava ainda revestido com sua personalidade (persona, máscara, disfarce) que, no momento de sua morte, êle fêz estalar como uma cota de malhas" (A. IV, 312).
Acabamos de deixar perceber a identidade do Mar dantesco com o Mar budista, parecendo introduzir uma significação deísta nas doutrinas pretensamente atéias do budismo; bastar-nos-á fazer notar que não existe uma verdadeira distinção a estabelecer entre a imutável Vontade de Deus e a Lex Aeterna, sua Justiça de Sabedoria, esta natureza que é a sua Essência, contra a qual não se poderia agir sem negar a êle mesmo. A Lei, Dhamma, fora sempre um Nomen Dei: no budismo, a palavra conserva-se sinônima de Brahma. Se Buda se identifica à Lei Eterna, isto significa que êle não poderia pecar; não está mais "sujeito à Lei"; sendo êle mesmo a Lei, êle só pode agir em conformidade com ela, e entre as interpretações do epíteto "Assim vindo" ou "Descobridor da Verdade", encontramos esta: "como fala, age". Mas para aquêles que ainda são viajantes inexperientes, o pecado (adhamma) é muito precisamente um delito contrário à Lei Natural, isto é, a parte da Lei Eterna que determina as responsabilidades e as funções do indivíduo. Em outras palavras, a Lei Eterna tem seu correlativo imanente na '"lei pessoal" (sadhama [Sn. 299]) de cada um, que determina suas inclinações naturais e suas funções próprias (attano kamma = ta eavtou prkttein); é por cupidez ou por ambição que o indivíduo é tentado a desprezar o horóscopo que normalmente o protege (Sn. 314, 315). Notamos isto de passagem, porque é um êrro muito difundido crer que Buda atacava o sistema das castas. O que êle fazia na realidade, era distinguir aquêle que só é brâmane por seu nascimento daquele que é um verdadeiro brâmane por sua gnose, e lembrar que a vocação religiosa está aberta aos homens de qualquer origem (A. III, 214; S. I, 167): idéia que nada tinha de nôvo. A casta é uma instituição puramente social: ora, Buda se dirigia principalmente àqueles cujas preocupações não são mais sociais: em relação ao chefe de família êle diz que sua enteléquia é a perfeição de seu trabalho (A. III, 363), e somente são condenadas às atividades que prejudicariam a outrem. Os deveres do Soberano são muitas vêzes enumerados. O próprio Buda era um personagem real, pois instituiu uma Lei; mas era brâmane por personalidade (Mil. 225-227). Os brâmanes só são criticados quando não permaneceram à altura de sua antiga norma. Em muitas passagens, "brâmane" é sinônimo de "Arahant".

Pretendeu-se que o Budismo só conhecia o deus pessoal Brahmã, de modo algum a Divindade, Brãhma, o que teria sido estranho na Índia do século V antes da nossa era, sobretudo num antigo discípulo dos brâmanes, e em textos que contêm tantas reminiscências dos Brãhmanas e dos Upanishads. De fato, não se poderia duvidar que na expressão gramaticalmente ambígua brahma-bhuto que define o estado dos totalmente libertos, é Brãhma que se deve ler e não Brahmã; aquêle que está “plenamente desperto", é Brahma que êle "veio a ser". E com efeito: 1.° nossa atenção é freqüentemente atraída para o conhecimento relativamente limitado de um Brahmã; 2.° os Brahmã são (por conseguinte) os discípulos de Buda, não é êle que é discípulo dêles (S. I, 141-145; Mil. 75-76); 3.° em seus nascimentos anteriores, Buda já tinha sido um Brahmã e um Mahã-Brahmã (A. IV, 88-00); seria portanto absurdo, na identidade brahma-bhalo = bud- dho (A. v, 226; Dh. III, 84; It. 57, etc.) admitir que brahma = Brahmã; 4.° está dito explicitamente que Buda é bem mais que um Mahã-Brahmã (Dh. A. ll, 60). É verdade que os brâmanes, falando a Buda, o chamam freqüentemente Brahmã (Sn. 293, 479, 508), mas nestas passagens Brahmã não é o nome do deus, mas, como em Skr., a denominação de um verdadeiro e sábio brâmane (25) e o equivalente de Arahant (Sn. 518, 519). Quanto aos deuses (deva) por exemplo, os Indras, os Brahmãs e muitas outras deidades menores, ou anjos, não é somente verdade que êles possuem ao menos tanta realidade que os homens, e que Buda, como outros Arahants visitam seus mundos e falam com êles; aliás Buda é "o mestre dos deuses bem como dos homens" (S. III, 86); e o que melhor, em resposta aos seus interrogadores, declara absurda a idéia que "não existe outro mundo” (como o sustentam os adeptos do "nada mais", que hoje chamaríamos positivistas [M. I, 203]) e a opinião paradoxal que "os deuses não existem" (M. n, 211). Considerando enfim que as mesmas proposições se aplicam ao Eu e a Buda - por exemplo, esta que nem um nem outro podem legitimamente se definir na forma "ou isto, ou aquilo", não somente a paráfrase de "Buda", é: aquêle cujo Eu é desperto (26) (Visc. 209; cf. BU, IV, 4, 13); mas não é apenas duvidoso que o Comentador tenha razão ao afirmar que, nestas passagens, o Descobridor da Verdade, o "assim vindo", é o Eu (Ud. 67 com UdA. III, 40). Buda não é apenas um princípio transcendente - Lei Eterna e Verdade - é também universal- mente imanente como Homem neste homem: pode-se deduzi-lo do epíteto "Todo no interior" (vessantara = sansc. vicvãntara [M. I, 386, It. 32]) que se lhe aplica, como das palavras: "Que aquêle que me deseja tratar, trate dos doentes" (Vin. I, 302) espantosamente análogas às de Cristo: "O que tiverdes feito por um dos menores dêstes meus irmãos, têlo-eis feito por mim."
[25. No ritual védico, o Brahmã é o mais sábio dos quatro oficiantes brâmanes, sua autoridade em todas as questões duvidosas; deduz-se que Brahma é o título mais respeitável que um brâmane possa dar a outro quando a êle se dirige].
[26. Budh', attã buddho, Vis. 209; ef. BU, IV, 4, 13, pratibudho atmã. O “Eu desperto” será o “Eu que fui submetido à mutação” (bhavit’ attã), passim, isto é, o “Eu não nascido (ajãta’attã) que não envelhece nem morre” (DhA. I, 228 cf. BG. II, 20)].

Em todos os escritos canônicos do budismo, procurar-se-ia inutilmente a afirmação de que não existe o Eu, nem realidade distinguível do eu empírico que sofre repetidamente a decomposição destrutiva. Muito ao contrário, o Eu é afirmado explicitamente; em particular na expressão que reaparece freqüentemente para dizer que isto ou aquilo não é o meu eu. Não devemos esquecer o axioma nil agit in seipsum, nem o que diz Platão: "Quando em um indivíduo, num mesmo momento, a propósito da mesma coisa, constatamos dois impulsos contrários, dizemos que nêle deve haver dois sêres. (Rep. 604 B). É o caso, por exemplo, quando o Eu é o amigo ou inimigo do eu-ego, (8. I, 57, 71-72; como em B.G. VI, 5-7) e sempre que existe uma relação entre os dois "eu". Cabe ao budista "honrar aquilo que é mais que o eu" (A. I, 125) e êste "mais" só pode ser "o Eu Ipseidade", senhor do eu, e finalidade do eu" (Dh. 380). É do Eu, e não certamente de si mesmo que fala Buda quando diz: "Tomei refúgio no Eu" (D. II, 120) ou quando êle ordena aos outros a "procurar o Eu" (Vin. I. 23; Vis. 393), de "fazer do Eu vosso: refúgio e vossa candeia" (D. II, 101; III 42; cf. S. III, 143). Estabelece igualmente uma distinção entre "o Grande Eu" (mah'atta, "Mahãtmã", o magnânimo), e "o Pequeno eu (app'ãtumo, o pusilânime); entre "o Belo Eu" e o "eu vilão": o primeiro reprova o segundo quando um êrro foi cometido (A. 1,57; I, 149; S. v, 88). Enfim, é absolutamente certo que dizer que Buda "negava um Deus, negava uma Alma, negava a Eternidade" é falso.

Em muitas passagens, diz-se de Buda e outros Arahants , ou Homens Perfeitos que êles "fizeram realizar o Eu" (bhavit' atto ); fizeram realizar", da mesma maneira que "uma mãe educa seu filho único"; com efeito esta forma causativa do verbo "realizar" - é muito incômodo que ela falte em nossas línguas - tem o sentido de "educar", tratar", cultivar", "servir", .prover às necessidades de", como qeoapenv". Transformar o Eu é uma parte indispensável da tarefa que incumbe ao budista, tão indispensável como sua contraparte negativa, por fim a todo "porvir". Se uma tarefa é terminada, outra o é ao mesmo tempo, e o fim é atingido. "É assim, diz Woodsworth, que construímos o ser que somos". Mas o sábio moderno deve distinguir com grande cuidado o "porvir" - que é um simples metabolismo, um processo não dirigido de desenvolvimento automático, do "progresso", do "realizar" que é uma cultura seletiva. O que se "realiza" é unicamente o eu empírico, composto de corpo e de consciência (vinnãna). Fora da constituição corporal, a consciência não pode surgir; nossas "habitações de outrora", isto é, nossas vidas anteriores são compostas dêste gênero, mas elas "não são minhas", "não são meu Eu" (S. III, 86); a propósito do religioso que suprimiu nêle as condições que trariam uma mutação renovada de sua consciência, nos é dito que é um ser cujo Eu se libertou, existente, plenamente satisfeito, e que sabe que para êle não há mais nascimento, mais porvir (S. III, 55).

O fim último não é somente atingir os mundos de Brahma ou de tornar um Brahmã, certamente que é um prodigioso êxito o de se tomar um Brahma, ou o que é bem mais, a Bahã-Brahmã da presente idade; mas não a mesma coisa ter-se tornado Brahma, um Buda e Arahant totalmente extinto. A distinção entre Brahmã e Brahma, transposta no vocabulário cristão, seria aquela que existe entre Deus e a Divindade; os textos budistas serão esclarecidos pela citação de proposições análogas tiradas de dois místicos cristãos entre os maiores e os mais intelectuais. Ei-los:

Mestre Eckhart diz: "Convém aprender o que são Deus e a Divindade, Deus trabalha, a Divindade não faz trabalho algum. Deus torna-se e não se torna (wirt und entwirt); êle é a imagem de todo o porvir (werdende); mas a natureza do Pai não "vem a ser" (unwerdentlich ist) e o Filho é um com ele neste não porvir (entwerdende). O porvir temporal termina no eterno não-porvir (Pfeiffer, 497 e 516). Pois-é mais essencial que a alma perca Deus, do que ela perca as criaturas" (Evans I, 274) se ela deve atingir êsse estado em que seremos "tão livres como quando não éramos, livres como a Divindade em sua não-existência", Por que não se fala da Divindade? Porque tudo o que ela é em si é apenas uma só e mesma coisa, e que nada há a dizer. Quando retomar ao solo, às profundezas, à fonte da Divindade, ninguém me perguntará de onde vim ou o que fui" (Pfeiffer 180-181). “Nossa essência não é aniquilada, embora não devêssemos ter nem conhecimento, nem amor, nem beatitude: isso se toma como um deserto onde somente reina "Deus", (27) É por isso que o autor desconhecido do Livro de Conselho Privado e da Nuvem da Ignorância faz uma distinção entre aquêles que são chamados à salvação e aquêles que são chamados à perfeição: citando a escolha de Maria "que tornou a melhor parte, aquela que não lhe será arrebatada (Livro do Conselho Privado, f. 150 a) êle diz a propósito da vida contemplativa que "se ela começa neste mundo, ela durará eternamente" e acrescenta que nessa outra vida "não mais será necessário praticar obras de caridade nem chorar pela nossa miséria" (Livro do Conselho Privado, cap, XXI).
[27. A "não-existência" a "fonte" o "deserto" de Mestre Eckhart são análogos ao Mar dos budistas de que falamos, onde desaparece a diferenciação (cf. a definição da theosis em Nicolas de Cuse: ablatio omnis alteritatis et diversitatis) e ao Mar do Amor, a Não-existência de Rümi, onde o Amante se torna o Amado (Mathnawi, I, 504, 1109; H. 688-690; 1103; III, 4723; VI, 2771 e passim, os comentários de Nicholson)].

Os paralelos dêste gênero ajudarão às vêzes melhor a compreender o conteúdo do budismo que as citações diretas do cânon búdico: colocam o .leitor na medida de passar de um vocabulário que êle conhece a uma linguagem que conhece menos, É quase inútil dizer que para o leitor ou o erudito europeu que se propõe estudar seriamente uma religião oriental, um conhecimento amplo da doutrina e do pensamento cristão e seu ambiente grego, é quase indispensável.

Os dois "eu" se encontram numa dramática oposição quando um dirige censuras ao outro. "O Eu repreende o eu (attüpi attanam upavadati) quando se faz o que não se devia fazer (A. I, 57-58); por exemplo, quando o Bodhisatta mendiga seu alimento pela primeira vez. Os restos pouco apetitosos que lhe dão enojam-lhe o coração, mas "êle se censura e não se deixa abater" (J. I, 66), O Eu sabe o que é verdade e o que é falsidade: o eu Feio não pode dissimular sua má ação ao Belo Eu (A, I, 149), O Eu é pois nossa -consciência, nosso saber interior, nossa syntêrêsis, o Daimon socrático "que só ama a Verdade” e que "sempre me reprime do que meu eu queria fazer", Todos os homens sabem por experiência que há "uma coisa na alma, como diz Platão, que os convida a beber e uma coisa que lhes proíbe; uma tem fome e sede, a outra "faz as contas" e cabe a nós decidir qual das duas será a soberana, a melhor ou a pior. O "Eu" é o Agathos Daimon; cabe a "mim" obedecer-lhe.

Isto nos leva a considerar a doutrina da "pureza do Daimon” (yakkassa suddhi), Não nos importemos com o fato que os gênios possam ser múltiplos, da mesma maneira que outras tradições conhecem uma multiplicidade de outros espíritos além do Espírito; admitiremos que o Daimon, por excelência (sansc. yaksha) fôra, a princípio, e era ainda nos Upanishads, Brahma: êste Brahma que é ao mesmo tempo transcedente, e, como o "Eu do eu", imanente. Os próprios Sãkyas tinham sido os adoradores do Yakkha Sãkyavardhana, que muito provavelmente não passa da natureza "sempre fecunda". No budismo, Buda tão freqüentemente qualificado de "Tornado Brama" (brama-büta), é também chamado um Yakkha, um Daimon, do qual falamos de passagem sôbre a "'pureza", Buda é "não-contaminado (anüpalitto), totalmente "expirado", chegado ao têrmo (attha-gata, como o predizia o nome que lhe deram, Sidharta), puro (suddho), imutável (anejo), sem desejo (Sn, 478; cf, M, I, 386, buddhassa...ãhuneyyassa yakhassa); "Tal é a pureza do Daimon, êle que é o Descobridor da Verdade tem direito à oferenda"; êle é o Daimon ãhuneyya a quem se deve apresentar a oferenda do sacrifício (S. I, 32; M. I, 386; Sn. 478). Enquanto que tôdas as existências se mantêm pelo "alimento" (físico ou mental) (D. III, 211) e com êle se deliciam, pergunta-se "qual é então o nome dêste Daimon que não encontra prazer no alimento?"' (S. I, 32; cf. Sn. 508). Isto lembra exatamente a pergunta: 'Não me dirás quem é? e a resposta de Sócrates: Se te dissesse seu nome, tu não o conhecerias"; aliás na tradição hindu e em muitas outras "Quem?”, é o nome mais apropriado do Deus que é o "Eu de tôdas as existências", que não veio de parte alguma, que jamais se tomou alguém. Este "Eu de todos os sêres" é o Sol; "não o sol que todos podem ver, mas o Sol que poucos conhecem pelo Espírito (arepassa, isto é, anulpalitto). É essa uma das numerosas razões para assimilar Buda (brahmabhüta, também chamado "o Olho que está no mundo" e "cujo nome é verdade") a esta "Luz das luzes", êste "Sol dos Homens".

O que nos ocupa no momento é a expressão "não contaminado". Explicitamente ou implicitamente, tanto nos textos búdicos ou prebúdicos (onde deparamos ainda com o "Sol”, "Lótus único do céu") a alusão metafórica se refere à pureza do lótus que "não é molhado pela água" acima da qual flutua. Buda, literalmente "não é maculado pelos contactos humanos" (Sn. 456; cf. S. IV, 180); não maculado pelo mundo (A. lII, 347) nem por tôdas as coisas do mundo (A. IV, 71). O que fica assim explícito, projeta uma luz sôbre a natureza do fim que Buda e outros Homens Perfeitos procuraram e atingiram. Imagina-se demasiadamente que a noção de um fim além do bem e do mal é de origem moderna. Ao contrário, ela se apresenta não somente nos textos hindus, mas também islâmicos e cristãos, faz parte da diferenciação normal entre a vida ativa e a contemplativa: a virtude é essencial para a primeira, dispositiva somente para a segunda, cuja perfeição é precisamente o fim último do homem, isto é, a contemplação beatífica da Verdade. É uma idéia que é repetida muitas vêzes nos textos budistas: aquilo de que o Homem Perfeito não é contaminado, não é somente o mal ou o vício, é também o bem e a virtude. Muitos textos o dizem em têrmos próprios: "não contaminado, seja pela virtude, seja pelo vício, o eu rejeitado, pois nenhuma ação é doravante necessária aqui" (Sn. 790); "aquêle que fugiu dos laços seja da virtude, seja do vício, que é sem mágoas, ao qual nenhuma poeira adere, aquêle que é puro, é a êle que chamo um verdadeiro brâmane. (Dh. 412), isto é, um Arahant. Ainda mais notável é a parábola da balsa: "Abandonai o bem e com mais razão ainda, o mal; aquêle que atingiu a outra margem não precisa de balsas" (M. I, 135). Temos uma analogia perfeita na frase de Santo Agostinho: "Que êle mais se sirva da Lei como meio de conseguir quando conseguiu" (De spir. et lit. 16) e aquela de Mestre Eckhart: "Atingida a outra não preciso mais de nau"; o mesmo autor diz também "Olhai a alma divorciada do que quer que seja... não deixando mais traço nem de vício nem de virtude".
A “pureza" não se atinge pela fé, nem a audição, nem o conhecimento, nem a ética, nem a ação: mas ela não se atinge também sem elas (Sn. 389); em outros têrmos, a formação moral é absolutamente indispensável, mas em si ela não traz a perfeição. Há regras de conduta estabelecidas para os chefes de famílias e outras para os religiosos; estas últimas, bem entendido, são mais severas, mas elas nada têm de excessivo: as torturas do corpo são severamente condenadas. Os religiosos que tinham cometido uma falta (é necessário compreender bem que alguns quiseram entrar na Ordem por razões indignas) podiam ser citados e censurados publicamente diante da assembléia dos monges, e expulsos no caso de faltas graves. Ao contrário, os monges-mendicantes não estavam então, mais do que hoje, aliás, ligados por laços inquebrantáveis; eram livres de regressar à vida familiar quando o quisessem; no máximo êles se expunham a que lhes censurassem sua fraqueza.

A prática das virtudes morais pelo chefe de famÍlia ou o discípulo-medicante, o conduz a renascer num céu mais ou menos elevado. O primeiro obtém méritos pela sua boa conduta e sobretudo pela sua generosidade; e a êste propósito deve-se notar que Buda exorta um chefe de família recentemente convertido, e tornado zelador leigo, a não abandonar seu antigo hábito de sustentar materialmente uma ordem rival de religiosos que são portanto heréticos aos olhos de um budista. O religioso-mendicante, que só possuía suas vestes, sua tigela de esmolas, seu cântaro e seu bastão, não podia êle ser generoso de seus bens; mas podia ensinar aos outros, e não se lhe poderia oferecer mais digno presente que de lhes dar a Lei Eterna. Os laços de família não existiam mais para êle como obrigações que implicam deveres; era-lhe proibido ocupar-se de política, participar dos prazeres, das provas, das ocupações das pessoas que vivem no mundo. Seu dever era devolver o amor pelo ódio àquele que o insultasse em palavras ou por vias de fato, e pregar as "estadas de Brahma" (brahma vihãra), os "estados divinos" do Amor, da Piedade, da Ternura e da Imparcialidade (mettã, karmã, uperkkhã). O primeiro dêstes estados consiste em fazer resplandecer voluntariamente um amor benevolente para todos os sêres vivos sem exceção. "Com um coração de Amor, êle permanece irradiante uma quarta parte, depois um segundo, um terceiro, um quarto; e assim o vasto mundo inteiro acima, abaixo, de todos os lados e por tôda a parte, continua a irradiar do coração de Amor abundante, sem limites, sem máculas" e pensando: "Que todos sejam felizes!" (Sn. 143 sg.). Aqui a palavra "todos" não designa somente os sêres humanos, mas todos os sêres do universo sem exceção. A Imparcialidade, ao contrário, é um estado subjetivo de paciência e de desprendimento, é considerar as coisas agradáveis ou desagradáveis que vos acontecem, no mesmo espírito que vós olharíeis representar uma peça: vós assistis às aventuras do herói sem nela participar. A “libertação do coração" que daí resulta é favorável a um renascimento último dos mundos de Brahma e à familiaridade, senão identidade de Brahmã, considerando que a disposição do religioso que nêle desenvolve êstes estados de espírito sem egoísmo é a mesma que a de Brahmã. Poder-se-á observar que até aqui é um método exclusivamente ético, que pressupõe a virtude da inocência (da não-novicidade) (ahimsv, M. I, 44; S. I, 163; Sn. 309, 368, 515, etc.). É uma palavra que se tomou muito familiar a nossos contemporâneos, sendo o princípio de "não violência" preconizada por Gandhi como regra de conduta em tôda a circunstância: "Depõe teu gáudio”. A educação da vontade precede logicamente à do intelecto.

Mas êstes métodos éticos que comportam ainda, a noção do eu por oposição a outrem são apenas uma parte do "caminhar com Deus" (brahma-cariyam = qewsnuopaeii) ou caminhar com a Lei" (dhamma-caryam); não é êste o último ponto do caminho; muito resta ainda a fazer. É-nos dito que, como os religiosos que não são ainda "completamente libertos e que se gabam de terem chegado ao fim de sua tarefa (A. v, 336; cf. M. I, 477) os deuses são freqüentemente inclinados a crer, bem falsamente, que sua situação é imutável, eterna, e que nada mais têm a realizar (A. IV, 336, 355, 378; S. I, 142). E, com efeito, vemos Buda censurar Sãriputta de ter indicado, a um brâmane que o interrogava, o modo de ter acesso aos mundos inferiores de Brahma somente quando resta ainda tanto caminho a percorrer (M. II, 195-196). É constantemente admitido que aquêles que ainda não obtiveram seu "expirar" total (sansc. parinirvãna) neste mundo, se todavia êles estão bastante adiantados para "não mais regressar", têm a faculdade de atingir sua perfeição e assegurar-lhes sua evasão final seja qual fôr sua situação no mundo: é esta a razão pela qual Buda é o mestre não somente dos homens, mas também dos deuses.

Qual é pois a tarefa que resta a cumprir aos religiosos e àqueles que atingiram uma vida (susceptível de durar idades) nos céus do Empíreo, sem pertencer ainda ao número de Arahants cuja "tarefa foi cumprida"? Não se trata de obter um estado superior pelas boas obras; o fruto das obras já foi adquirido: trata-se daí por diante unicamente da vida e contemplação (jhuna) O jhãna (sansc. dhyana, chin, tch' an, jap. zen) corresponde quase exatamente ao segundo têrmo da série: "Consideração, Contemplação e Êxtase" na ascese ocidental; a sahudhi, literalmente "composição" ou "síntese", como a dos raios no centro do círculo (28), corresponde ao Êxtase e pressupõe a consumação do jhãna em tôdas as etapas, O jhãna, é a realização ativa e desejada de estados de ser diversos daquele no qual o contemplativo se encontra normalmente; a fôrça do têrmo é totalmente desconhecida pelos sábios que a denominam uma "meditação" ou, o que é ainda mais falso, um "devaneio". A contemplação é uma disciplina metal das mais árduas, que exige uma longa prática: não é uma variedade de sonho no estado de vigília; "nada aí lembra o transe, mas muito mais uma vitalidade exaltada" (P. T, S. Pãli Dictionary, s. v. jhãna) , O adepto pode passar na hierarquia dos estados de um a outro, a sua vontade, e a nela tomar a descer (D. II, 71, 156); êste domínio absoluto dos estados contemplativos distingue claramente o yoga hindu de tôda a experiência mística que é apenas passiva e adventícia. Os estados contemplativos constituem uma espécie de escala que se pode ascender de estado de ser ou "níveis" inferiores, aos superiores; mas a finalidade última da libertação se encontra ainda além.
[28. No simbolismo arquitetural, ao qual se refere freqüentemente, a concentração dos poderes psíquicos em sua origem, empresta, freqüentemente, a imagem dos arqueiros que se reúnem no acabamento do zimbório, e êste acabamento (arrendado) é a "porta do sol" pela qual se escapa de um mundo condicionado qualquer, que representa o espaço interior (a "gruta" de Platão) do edifício].
Os jhãnas são em número de quatro, acessíveis tanto aos leigos quanto aos monges; com os quatro arupa-jhãnas (estados "sem forma", completamente imateriais), é uma série de oito etapas da libertação (vimokkha, D. II 69-71, 112, 156. e passim). No primeiro jhãna, é preciso dar ao espírito "uma única direção" e voltar a atenção sôbre qualquer suporte da contemplação que seja de uma natureza apropriada ao temperamento e à constituição do discípulo; é geralmente seu mestre que o escolhe. No segundo, o praticante vê ainda a forma exterior a êle, mas não mais tem consciência da sua própria; é uma experiência extática. No terceiro, o êxtase se desvanece, e só resta uma consciência da infinidade do poder de discriminação (vinnãna). No sexto domina a sensação que "nada existe" (n'atthi kimaci). No sétimo, não há mais discriminação, e é um estado onde não há nem consciência nem inconsciência (sannã). No oitavo, há a interrupção de tôda a consciência ou sensação (D. II, 68-71, 112, 156). Quando um religioso se tornou mestre dêstes oito graus da libertação em sua ordem ascendente, em sua ordem descendente, e numa e outra ordem consecutivamente, de tal sorte que se pode submergir em qualquer um dêstes estados, ou dêles sair à vontade e durante o tempo que desejar; quando pela extirpação dos fluxos êle penetra nesta liberdade da vontade (cetto vimutti) e nesta liberdade intelectual (pannã - vimutti) da qual êle tem agora um conhecimento direto e uma prática efetiva desde agora, então se diz dêste religioso que êle é "livre nos dois sentidos", e não existe liberdade, nos dois sentidos, diversa nem mais alta que aquela (D. II, 71; cf. Sn. 734-753).

Mas é necessário compreender bem claramente que a obtenção dêste completo domínio, permitindo percorrer a hierarquia dos estados de existência ou céus superpostos, não é um fim em si, mas um meio de obter a libertação de todos os "estados"; pois todos são contingentes, todos têm uma origem e um fim; por pouco que se conheça sua natureza verdadeira, seus prazeres e suas dores, e o meio de dêles se evadir (nissaranam) , ninguém com êle se deliciará nem nêle desejará permanecer para sempre, fôsse mesmo no estado mais alto (D. II, 79). Seja qual fôr a nossa situação na hierarquia dos mundos, sempre restar-nos-á uma outra margem a atingir: é somente para o ser completamente liberto que nada mais resta a cumprir. Do ponto de vista do summum bonum; alcançar um dos céus não vale muito mais que estar ainda neste mundo; a grande obra não está ainda realizada. É para explicar isso que Buda expõe a doutrina do Caminho do Meio: Jajjhena tathagato dhammam deseti.

Esta doutrina importantíssima, que é platônica, aristotélica e escolástica, tanto como bramânica e budista, tem tantas aplicações quantas alternativas possui; se se escolhe entre êste mundo e qualquer outro que se opõe como as "orlas" de um mar, êste é apenas um caso particular.
O verdadeiro "habitante do fim do mundo (lok' anta-gu) não está ligado à existência neste mundo nem a nenhum outro, por mais alto que seja; pois todos os sêres (sattã), os deuses com os homens, estão presos nas correntes da morte" (S. I, 97, 105). Há sempre dois extremos (antã); é perante o extremista (anta-g-gahika) que dá um valor absoluto a um ou outro, que Buda propõe o que é mediano; o verdadeiro “Caminhar com Deus" (brahmacariya) é um Caminho do Meio. Desde o tempo em que era Bodhisatta, após ter sido criado na abundância, depois de ter mortificado a carne quase até morrer, o Mestre compreendera que nem um nem outro dêstes extremos o conduzirá ao conhecimento que procurava o que obteve seguindo o Caminho de Meio. (Vin. I, 10). Da mesma maneira a Pureza não se obtém pela virtude, como também sem ela (Sn. 839); trata-se de ser puro não somente do vicio mas também da virtude. O mesmo se dá com tôdas as “teorias" (ditthi), tôdas as afirmações e negações: é (é o êrro eternalista) e não é (é o êrro aniquilacionista) não são nem uma nem outra das definições exatas da realidade última (S. II,19-20,117): como para Bventhins, a "fé é uma média entre heresias contrárias". Isto não quer dizer que o Caminho do Meio tenha uma dimensão, se se quisesse localizá-Io no espaço, o fim não estaria aqui, nem além, entre os dois (Ud. 8) e não é, "contando seus passos" mas em si mesmo que se chega ao fim do mundo (8. I, ó1-ó2; A. 11, 48-49; 8. IV, 94). O tempo é encarado da mesma maneira, e é talvez êste o lado mais interessante do principio atomista. A existência (isto é, a origem e a dissolução) de tôdas as coisas, é momentânea (khamika, Vis. I, 230, 239; Dpvs. I, 16) como ela o era para Heráclito (cf. Plutarco, Moralia, 392 a. C.). Este in stant e (khana) no qual todas as coisas surgem, existem o cessam de ser simultaneamente, é êste presente sem duração que separa o passado do futuro e dá a ambos uma significação. O tempo, no seio do qual sobrevém a mutação, não é nada mais que a sucessão ou fluxo de instantes análogos, cada um dos quais sendo em si fora do tempo (29) é nosso Caminho do Meio (A. IV, 137). A vida, tal como a conhecemos empiricamente, é o campo das ações transitórias, e são elas, precisamente, das quais herdamos as conseqüências. Por outro lado, as atividades imanentes, permanecendo confinadas no agente, não envolvem êste nos acontecimentos exteriores, e, pela mesma razão, permanecem inacessíveis à observação. Várias expressões budistas por ex. thit'ato (S.III, 55; Sn. 519, cf. 920) que se opõe ao caráter transitório aniccam de tudo o que é não- ipseidade, implicam a imobilidade do Eu liberto. Daí resulta que a vida transcendente, supralógica, do Eu liberto, está contida no Eu. Os instantes tomados em si mesmos são apenas um só; sua sucessão aparente é convencional.
[29. É verdade que os "homens têm o sentimento de que o que não pode ser formulado em função do tempo não pode ter significação", mas "a noção de um ser imutável e estático deve-se entender mais como indicando um processo de uma vivacidade tão intensa que ele compreende ao mesmo tempo o princípio e o fim" (W. H. Sheldon, The Modern Schoolman, XXI, 133). "Mais a vida do eu se identifica com a vida do não-eu (isto é, o Eu), mais se vive intensamente” (Abd - el- Hãidi no Véu de lsis, jan. 1934)].

O 'Instante" sem duração conseqüentemente, é nossa mais bela ocasião: - "é hoje o dia da salvação" - e vemos Buda dirigir elogios aos religiosos que "aproveitaram seu instante", e censurar os que o deixaram escapar (S. IV 126; Sn. 333). Os instantes, de fato, não escapam; mas quem consegue segurar um, escapa de uma só vez à sua sucessão; para o Arahant que "expirou", o Tempo não mais existe. Seja qual fôr o caso, é pelo princípio de causalidade que Buda ensina o Caminho do Meio: sejam quais forem, os dois extremos, é o desejo, literalmente a "sêde" (tanhã) que "semeia" o ser para um porvir renovado; é somente pensando no Meio que se evita ser contaminado por um extremo ou por outro (A. III, 399-401; Sn. 1042). Platão, igualmente, diz que é segurando bem o fio de ouro da Lei comum que o boneco humano evitará os puxões contrários e desordenados que nos puxam para cá e para lá, na direção das boas ou más ações, determinadas pelos nossos desejos (Das Leis 644).
Não é sem razão que o religioso é tratado de operário (semana, literalmente, "aquêle que se esforça", o exato equivalente semântico de “asceta"), êle não conhecerá repouso antes de se tomar aquêle que (fêz o que tinha a fazer" (kata- karaniyo). É necessário que seja um homem senhor de sua i vontade e de seu pensamento, não seu joguête. Aquêle que Buda louva como "iluminador” da floresta onde vive na solidão, é o religioso que, regressando de sua viagem, de sua mendicidade, retoma ao seu assento de meditação, resolvido a não se levantar antes de se ter libertado dos fluxos. Para obter o que não foi ainda atingido, para verificar o que não foi ainda verificado, o religioso que abandonou o mundo por pura fé, que é ainda um discípulo, deve dar prova de virilidade, de heroísmo (viriyam - andreia - virtus) e tomar a mesma resolução do próprio Bodhisatta. "'Possa eu só conservar a pele, os tendões e os ossos, enquanto minha carne e meu sangue secarem, em vez de me conceder um descanso na prática da virilidade antes de ter obtido o que se pode obter pela paciência humana, a virilidade e o progresso perseverante" (S. ll, 28; M. I, 481; A. I, 50; J. I, 70). "Eu me tornarei diferente da substância que constitui um mundo, eu extirparei a noção de "eu": e do "meu", eu terei o domínio perfeito da gnose que não se comunica, eu verei claramente a causa e origem causal de tôdas as coisas"; tais são as intenções do religioso.

Como vimos, o desígnio original e fundamental (attha) do Bodhisatta era obter a vitória sôbre a morte, e com efeito êle venceu a morte durante a noite do Grande Despertar; em seguida, ensinando a Lei Eterna, êle abriu as portas da imortalidade a outros. Podemos pôr à prova a eficácia do "Caminhar com Brahma" (que o religioso realiza de conformidade com seu ensinamento) perguntando-nos como o Arahant considera a morte de outro ou aguarda a sua própria. No que concerne à morte de outro, faz parte de sua disciplina estar "atento à morte", refletir no fato de que todos os sêres sem exceção, mesmo os deuses do mundo de Brahma, são, no fim de contas, mortais; não perdendo nunca de vista esta idéia, o religioso permanece impassível mesmo diante da morte de Buda, pois sabe que a corrupção e a dissolução são inerentes a todos os compostos: somente os noviços e os deuses inferiores choram e se lamentam quando "O Olho do Mundo" desaparece. A Índia repetia há muito tempo que a imortalidade do corpo é coisa impossível; portanto o Arahant sabe muito bem que sua hora virá. O homem mediano, ignorante, "se lamenta, esmorece, chora e geme" quando o fim se aproxima; não o discípulo ariano que extingue os fogos do eu; sabe que a morte é o fim inelutável de todos os sêres que nasceram; é para êle um axioma, e espera a morte perguntando-se somente "como fazer o melhor uso de minha fôrça no acontecimento que se aproximar (A. III, 56). Estando já morto para tudo o que é suscetível de morrer, espera. com perfeita calma a. dissolução do vínculo temporal; pode dizer: Não desejo a Vida e não estou Impaciente para morrer. Espero minha hora como um servidor espera seus salários; despojar-me-ei de meu corpo enfim, perciente, refletido" (Th. I, 606, 1002). Mesmo se o discípulo ariano - seja êle religioso ou ainda chefe de família - não terminou de fazer tudo o que tinha a fazer, tem ao menos a segurança que, voltando à existência alhures, segundo seus méritos, ser-lhe-á possível, também, lá, trabalhar está no seu aperfeiçoamento. As palavras "O tumba, onde está tua vitória, ó morte, onde está teu aguilhão?", poderiam ter saído dos lábios de Buda ou de qualquer verdadeiro budista. Para êle, não mais porvir, não mais sofrimentos; se fica ainda a sofrer, não poderia ser por muito tempo, pois já está adiantado na longa estrada que leva ao Nirvâna, e -em verdade, êle em breve atingirá o seu término".


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