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O Hinduísmo

Que é o hinduísmo? Não se trata de uma religião do tipo das nossas que se poderia definir negativamente isolando delas o conjunto das formas não-religiosas da existência. Em alguns aspectos, é inseparável da especulação filosófica; noutros, da vida social. A vida social concebe-se no âmbito das classes e das castas, assim como dos modos de vida ou âçramas: é em função dessas repartições que se estabelece o dever, o imperativo moral, por seu turno de essência religiosa. O termo considerável de dharma, propriamente o «suporte» dos seres e das coisas, designa simultaneamente a lei na sua maior extensão, a ordem que preside aos fatos nas disciplinas normativas, mas mais especialmente a lei moral, o mérito religioso: é o único termo que traduz o nosso vocábulo «religião» e, ao mesmo tempo, o excede e permanece aquém. Nasce-se mais no hinduismo do que se toma um adepto dele, porquanto a condição está subordinada aos quadros gerais da vida indiana. No entanto, evidentemente que se não deve contestar que, em data antiga, o dharma se propagasse por meio de conquista ou de assimilação pacífica entre muitas populações que o não tinham herdado. De contrário, como se explicaria o império que assumiu na maior parte da Índia?
O hinduísmo compõe-se de diversas contribuições: uma contribuição propriamente védica, que resulta da transmissão direta das crenças e especulações do Veda. Mas tudo o que existe no Veda e se encontra na Índia clássica não é necessariamente herdado. Deve admitir-se que o hinduísmo, atestado relativamente tarde nos textos, existia sob alguma forma «primitiva», desde a época védica e porventura antes. Julgou-se encontrar na civilização estrangeira da bacia do Indo (Mohanjo Daro e Harappa), civilização que remonta a 2500-2000 antes da nossa era, traços de um culto hinduísta: protótipo do deus Çiva, representações do linga ou «falo», alusão figurada a exercícios de Ioga - nada de tudo isto é seguro. Em compensação, parece que numerosas práticas védicas inseridas no alto culto e a maior parte, se não a totalidade, do ritual privado e mágico não passam do hinduismo pré-clássico.

Influências recebidas
Desde a origem, e mais à medida que se estendia através do continente indiano, o hinduismo impregnou-se de contribuições autóctones, devidas ao contacto entre a cultura védica e a população anariana, eventualmente dravidiana, ou de qualquer outra maneira que se lhe queira chamar. Com efeito, muitas características pseudo-hinduistas são do folclore religioso, mais ou menos primitivo, como se encontra, de resto, na Índia. Observam-se em todos os cultos locais: divindades de aldeia, emblemas de uma simbólica ingênua, sobrevivências animistas, etc. Muitas dessas características passaram para o culto normal, de modo que, levando as coisas um pouco longe, seriamos tentados a ver no hinduísmo apenas um formigueiro de cultos elementares que nada teriam de comum com o vedismo. Mas há que reagir e recordar que o que conta numa religião são muito menos os materiais de que se compõe que o sistema novo que estabelece, a criação que representa. A despeito de todas as analogias com formas atestadas no Irão ou na Próxima Ásia, ou no Sueste Asiático, apesar da existência latente de um shamanismo difuso, temos de admitir que o hinduismo é um fato altamente original.
A essas influências nativas foi possível juntar outras por contatos de civilização. Na Antiguidade é pouco provável que a Grécia fornecesse o que quer que fosse à Índia em matéria de crenças: supôs-se, sem provas, que o culto das imagens, desconhecido no Veda, pudera ter sido solicitado pelo exemplo grego. As afinidades, assaz superficiais de resto, existentes entre a teoria do samsâra e o pitagorismo representam mais uma resultante de substrato que de inspiração. O Irão talvez contribuísse para fixar no Norte da Índia, durante alguns séculos, uma adoração ao Sol (cujas tendências estão, aliás, presentes no Veda) e propagar algumas influências masdeístas, mas convém notar que o culto de Mitra (que, no Veda, nada deve ao Irão, além da origem pré-histórica comum) apenas beneficiou de uma extensão reduzida na Índia pós-védica. Foram soberanos estrangeiros como os Kushânas (sécs. I e II) quem, a avaliar pela cunhagem de moeda, teria introduzido crenças iranianas (com o sacerdócio dos Magos), porventura babilônias.
Há em seguida que descer até ao século XII para decidir se o pensamento indiano sofreu uma marca durável do Islão, com a qual teve de permanecer muito tempo em contacto. Ora, notam-se perfeitamente a partir dessa data movimentos sectários de origem nitidamente hindu que parecem inspirar-se em palavras de ordem islâmicas: abolição das imagens, reivindicação de aspectos purificados da religião, de algumas práticas místicas. Os autores modernos que falam de uma aproximação entre o hinduísmo e o Islão, que comparam (como é legítimo) o pietismo hindu e a mística sûfî, dão a entender sem reservas que as coisas do lado hindu não se desenvolveriam de outro modo se não existisse a vizinhança muçulmana. Este argumento é difícil de refutar. No entanto, salvo porventura no Kabîr e, através dele, nas seitas mais modernas, algumas de resto híbridas, não há absolutamente nada na evolução indiana que se possa e deva explicar senão pela lógica interna e a força própria do movimento. São muito raros e, no seu conjunto, desprezáveis os textos hindus que exprimem nitidamente uma inspiração no Islão: o que, para todos os efeitos, demonstraria melhor essa influência é a reação que se manifesta nesta ou naquela seita, no sentido de um reforço das castas e das regras hindus.
Quanto à influência cristã, é muito moderna e apenas afeta grupos muito limitados. Outrora, as relações que se julgara descortinar entre a Natividade e a infância do deus Khrishna eram ilusórias, assim como a suposta proveniência cristã do mito do Çvetadvîpa, a ilha remota habitada por homens brancos que adoravam Naraiana (episódio do Mahâ-Bhârata). O cristianismo teria atingido a orla do mundo indiano na época do rei cito-parta Gondofares (séc. I), que, segundo a lenda, o apóstolo São Tomás visitou quando decidiu evangelizar a Índia. Na verdade, existiu uma comunidade nestoriana no Malabar, mas nada se sabia dela antes do século IV e a chegada dos Jesuítas, em 1600, pôs termo à sua atividade.

in Renou, L. O Hinduísmo. Lisboa: Europa - América, 1969.


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