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Darchanas Mimansa e Vedanta

por Solange Lemaitre em O Hinduísmo (1958), Editora Flamboyant, São Paulo.


Escola Mimansa
O termo Mimansa, que significa "investigação" ou "'reflexão profunda", aparece em tôda a literatura indiana desde o Atharva-Veda e o Yajur-Veda. Esse darchana tem por objeto estudar os textos sagrados e determinar o sentido exato de certas passagens do ritual e da especulação.
As investigações da Mimansa podem referir-se seja ao Dharma, seja ao Brama, o que explica as duas formas dessa doutrina. A primeira, que é mais importante, trata do exame dos ritos. Chamam-na "Purva-Mimansa". A segunda é a "Utara-Mimansa" ou "Vedanta Mimansa". As duas se opõem e se completam.
Os Sutras de Jaimini, o mais antigo tratado da Mimansa, tinha um fim ao mesmo tempo teórico e prático. Eles deviam examinar os mantras (versos) e os bramanas (interpretações) para fixar as regras gerais do exercício perfeito dos ritos. Os Mimansasutras dividem-se em doze adhyayas que contam 2.700 sutras. Cada adhyaya divide-se por sua vez em pada ou "quartos", às mais das vezes em número de quatro, e tratam de assuntos diversos (adhikarana).
O dharma é por excelência o assunto básico da Mimansa. Ao depois a noção do Ser Supremo tomará mais importância. O método de apresentação da Mimansa consiste em "cinco momentos" : estabelece-se a questão a ser tratada (visaya), exprime-se a dúvida que ela comporta (sansaya ou visaya) e desenvolve-se uma vista preliminar possível (utarapaksa) que coincida geralmente com a refutação definitiva e a conclusão (sidhanta); o utarapaksa é às vezes substituído pela sangati, que consiste em estabelecer conexões com o contexto [L. Renou, ib. 15, t. II].
A propósito da origem "não-humana" do Veda e de sua autoridade tradicional, a Mimansa desenvolve a teoria da eternidade do som. "O "sabda", ao mesmo tempo "som" e "palavra", é como o espaço (akaça), indefinidamente presente e poderoso: este é um dos postulados essenciais do sistema. O som eterno está para o som empírico como o ser está para a sua manifestação" (idem).
A Mimansa insiste sobre a necessidade de uma ortografia correta e de uma pronúncia perfeita para a boa compreensão dos textos, bem como sobre a obrigação de distinguir bem as diferentes classes de mantras segundo os ritmos que lhes são próprios. A Mimansa, rigorosa disciplina do espírito, é um darchana riquíssimo de ensinamentos. Ele é a exegese dos Bramanas, como o Vedanta é a exegese dos Upanichades.

Escola Vedanta
O Vedanta quer dizer fim, conclusão dos Vedas. É o último dos seis darchanas ortodoxos e dá seqüência aos Upanichades que terminam os textos védicos. Os Upanichades representam os fundamentos sobre os quais repousa o edifício do Vedanta. Porque a tradição primordial expressa pelos Upanichades, critério da Verdade por excelência, pois que ela é "çruti", constitui a essência mesma da doutrina do Vedanta. O Vedanta é a exegese dos Upanichades do mesmo modo que a Mimansa é uma exegese dos Bramanas. É chamado, aliás: a segunda Mimansa.
Os principais ensinamentos do Vedanta atribuídos ao richi Badarayana ou a Vyasa, autor da epopéia e dos Puranas, foram agrupados numa síntese ou coleção de "Aforismos" muito concisos que trazem o nome de Brama-sutras e de Charihaka-Mimansa.
Os cinco grandes comentadores do Vedanta são: Xankara, Ramanuja, Nimbarkha, Madhva e Valabha. Mas os mais célebres dos comentários sobre os Brama-sutras são os de Xankara, que muitas vezes se intitulam: Xankaraçárya. "Seu importante comentário, escreve Luis Renou, é uma das grandes produções da filosofia indiana".
Verdadeira doutrina de meta física pura, o Vedanta abre horizontes ilimitados às especulações do espírito. Não é um sistema fechado, bem ao contrário: suas perspectivas se desdobram no Universo e no Infinito. O fundo da doutrina repousa sobre a noção de unidade da realidade espiritual e das relações entre o Ser Supremo ou Brama e o Eu individual ou átman. Pode-se resumir assim a via do Conhecimento ensinada nos Upanichades:
- O átman é Brama
- So'ham: Eu sou aquele
- Tat tvan asi: Isto, tu o és, tu-mesmo.
Esta fórmula contém em potência todos os desenvolvimentos ulteriores da filosofia e da metafísica, o germe das verdades que fecundará a vida espiritual no decorrer dos séculos.
O grande mantra: tat tvam asi, tu és, isto, será posto em evidência por Xankara pelo ano 800 depois de Cristo. Ele forma o Credo do advaita (ou não-dualismo) de Xankara. Só o Uno existe. O mundo manifestado é uma ilusão, uma realidade empírica. Se vivemos em Deus, a manifestação desaparece; se vivemos no mundo, Deus já não existe.
A esse respeito é preciso citar o exemplo clássico da serpente. De noite, um pedaço de corda estendido no caminho afigura-se-nos uma serpente. Com a luz do dia a ilusão se dissipa: vê-se a corda, a serpente desaparece.
O sistema de Xankara prova a identidade do Jiva, alma individual, e de Brama, alma universal. O que não quer dizer que o Jiva seja igual a Deus (Brama). Essa identidade não se estabelece na manifestação, porque a parcela não poderia ser considerada como o equivalente da Totalidade. Mas o substrato que existe no jiva e no universo é por toda a parte o mesmo; assim se revela o aspecto ontológico, e vemos o "real do real”.
“A manifestação (natureza ou maya) só tem um degrau inferior: é o substrato (necessário para que se produza a ilusão) que é absolutamente real; há, pois, na realidade empírica, uma indefinível mistura de existência e de não-existência"
[Swami Siddhesvarananda, Quelques aspects de Ia Philosophie Védantique].
Segundo o tema central do Vedanta (a relação entre o Brama e o átman) pode-se dizer que há três aspectos diferentes no indivíduo (microcosmo) e na manifestação (macrocosmo).
aspecto grosseiro - vaiçva-nara (individual) - Virat (universal)
aspecto sutil - tajasa (individual) - Hiranyagarbha (universal)
aspecto causal - prajan (individual) - Ichvara (universal)
Virat representa a totalidade dos seres animados. Hiranyagarbba, a totalidade dos espíritos individuais ou mental cósmica, a vida universal. Ichvara, é Deus que compreende em Si mesmo a manifestação total. E além desses três degraus, além do não-manifesto (estado causal) em que se encontram todas as possibilidades de seres, existe: o incondicionado, o incompreensível, o impossível, o inexprimível, que é Brama.
Brama é o suporte do universo, como o átman é o suporte do indivíduo. Para compreender bem o Vedanta é necessário fazer antes de tudo a distinção entre o Eu, princípio do ser, e o eu individual. O Eu, princípio transcendente, permanente, imutável, nunca é afetado pela individualidade passageira que ele reveste. Ele não se "individualiza". Ele pode desenvolver possibilidades indefinidas, através de uma infinidade de degraus sob o ângulo da manifestação, sem que jamais seja alterada sua permanência. O Eu é o princípio pelo qual existem todos os estados do ser, cada um em seu domínio próprio.
O Vedanta conduz à Libertação, "a qual realiza definitivamente e em plena consciência a unidade do ser, reabsorvendo o jiva e o Brama, e abolindo o avidya (o não-saber) e o carma" (Renou). Depois de Xankara, o mais eminente comentador dos Brama-sutras foi Ramanuja. Seu comentário, o Sribhasya constitui uma obra considerável. Suas "vistas" são diferentes das de Xamkara. Sua idéia mestra é que a unidade reside não num princípio único, mas em partes distintas de um princípio. Madhva e Nimbarka expuseram por sua vez outras teses em base dualista, enquanto que Valabha estabelecia o sudhadvaita ou "não-dualismo puro".
O Vedanta tem sempre se esforçado em suas diversas escolas por conservar ou por compreender melhor, graças aos seus Comentários estritamente ortodoxos nos "seis darchanas", a antiga sabedoria da Revelação do Veda. Xankara, o grande representante do Vendanta, declara:
"Já que tudo procede do Eu - que tudo se resolve no Eu, e que, na fase intermediária de conservação, tudo permanece impregnado do Eu, por este motivo, o Eu não poderia ser percebido por Si-Mesmo, e, conseqüentemente, tudo é o Eu".
[Comentários de sri Xankaraçarya, citado por Swami Siddhersvarananda em Essais sur Ia Métaphysique du V édanta, pág. 66].
A via da Libertação (o Vedanta) conduz à Realização do Absoluto. Eis a sua descrição, feita por Xankara em "Vivekaçudamani”, descrição do Ser livre - o jivã-mukta:
"Aquele cuja mente é absorvida em Brama - mas que conserva, no entanto, uma vigilância completa - e que se libertou ao mesmo tempo de todas as características do estado de vigília - cuja realização é isenta de todo o desejo - esse é considerado um jiva-mukta."
"Aquele que apaziguou em si todo a inquietude relativa ao estado manifesto - e que, embora possuidor de um corpo composto de partes, é ele mesmo sem partes, e cuja mente está livre de todo o temor, esse é considerado um jiva-mukta"
"A ausência de idéias tais como "eu" ou "o meu", mesmo neste corpo vivo, ausência essa que segue como uma sombra - é a característica do jiva-mukta"


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