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Darchanas Sankhya e Yoga

por Solange Lemaitre em O Hinduísmo (1958), Editora Flamboyant, São Paulo.


Escola Sankhya
O Sankhya, um dos sistemas mais elaborados da filosofia indiana, é um darchana que tem por objeto enumerar e analisar os elementos da natureza ou manifestação universal, para fazer a síntese de tudo.
O nome Sankhya significa "O que repousa sobre o número", alusão ao emprego característico das enumerações e classificações desse darchana. Kapila, o grande e antigo sábio, é o autor dos Sankhya-Sutras. O Sankhya é um sistema dualista que reconhece dois planos: um plano fenomenal, o da Prákriti, a natureza universal, e outro transcendental, o do purucha, o espírito.
A Prákriti com seus três gunas, ou modalidades que a qualificam, forma o conjunto de todos os fenômenos. Ela engloba ao mesmo tempo os fenômenos e a percepção desses fenômenos no homem, isto é, o mundo psíquico e o mundo físico. Sob o império de um determinismo exprimido em fórmulas científicas notáveis, a prákriti move-se do estado indistinto, sutil, ao estado grosseiro, isto é, do homogêneo ao heterogêneo.
Em face da natureza está o espírito (purucha) ou átmans particulares, impessoais, neutros. A união do purucha e da prákriti cria o universo, porque a prákriti, primitivamente inerte, só entra em atividade pelo contacto com o purucha para produzir individualidades vivas. E assim é igualmente criada a dor universal. Unindo-se ao purucha a prákriti aprisiona a mônada puramente numenal e impassível e a transforma num jiva, personalidade viva e sofredora dotada de um carma pela vida, e mergulhada indefinidamente por esse mesmo carma no sansara e na dor de viver.
A salvação (mokcha) consistirá em libertar o purucha, a alma numenal, da influência da prákriti. O que caracteriza o Sankhya é a enumeração dos diferentes degraus do ser manifestado. Esse sistema se resume em vinte e cinco tatvas ou princípios e elementos correspondentes a esses degraus hierarquizados, sem perder de vista que o purucha e a prákriti existem desde toda a eternidade.
A prákriti é o ponto de partida. Substrato universal dos fenômenos, suscetível de agir indefinidamente, ela é a causa eficiente e material do mundo, e ao mesmo tempo uma substância como os seus produtos. Absolutamente una, mas constituída por três essências, os gunas (Renou). Ela é o indeterminado (avyakta), o principio "preestabelecido" (Pradhana). Os gunas são ao mesmo tempo partes inerentes e qualidades constitutivas da prákriti, - qualidades com relação a ela, embora sendo substâncias tomados em si mesmos. Como todos os esquemas do Sankhya, eles devem ser compreendidos ao mesmo tempo fisicamente (macrocosmo) e psiquicamente (microcosmo). o mais nobre dentre eles, o salva, corresponde à luz física e espiritual. O segundo, o rajás, é a energia, a paixão, o que põe em jogo na natureza e no homem as atividades e os sofrimentos. O tamas (trevas) é a carga, o obstáculo, o que mantém em passividade o mundo inorgânico, o que perde e cega o homem. Satva e tamas são inativos por si mesmos; é o rajás que os põe em movimento. O objeto que possui a predominância deste ou daquele guna desenvolve dentro e fora as qualidades inerentes a esse guna. A alegria que nos é proporcionada pelas flores emana do satva que lhes é inerente. No estado inerte da natureza, (a mulaprákriti ou "natureza original") os gunas estão em equilíbrio: é o período de avyakta, do "nome evoluído", ou, em termos cosmogônicos, o pralaya - "o estado de resolução". Mas esse equilíbrio se rompe em certo momento: movida por si mesma, sem socorro de agente exterior, ou então incitada pela proximidade do purucha (que age sobre ela à maneira de um ímã) a prákriti põe em movimento o mecanismo evolutivo [Renou ib., págs. 38-39].
O Sankhya é uma explicação evolutiva do mundo que tem por fim a libertação. O Yoga se servirá dessa análise para atingir o domínio fisiológico e psíquico, porque o Sankhya e o Yoga se completam como o Vaisesika e o Nyaya, porque analisam a matéria e o espírito.

Escola Yoga
A palavra "yoga" significa "união" em sânscrito, e designa principalmente a união efetiva do ser humano com o universal, segundo certos preceitos seculares.O termo yoga aplica-se também a um darchana cuja formulação em sutra é atribuída a Patanjali. O yoga de Patanjali que é uma ascese particular admite um Deus pessoal: lchvara.
Os Yogas sutras ensinam, ao que o deseje, "a tornar-se o que ele é", isto é, a realizar em si o purucha que constitui sua verdadeira essência. Uma dupla disciplina é necessária para atingir esse fim. Primeiro, a abolição do sentido da personalidade, desintelectualização tão completa quanto possível e a imersão do espírito no númeno interior.
Do ponto de vista prático, o Yoga representa a realização do Sankhya, de que ele é o darchana complementar. Ele se serve dos elementos definidos pelos outros darchanas para obter um domínio ao mesmo psicológico e fisiológico.
"O fogo do Yoga queima a prisão do pecado que cerca o homem. Purifica-se o conhecimento e obtém-se diretamente o Nirvana. Do Yoga vem o conhecimento; o Conhecimento por sua vez ajuda o Jogue. O Senhor se compraz naquele que reúne em si o Yoga e o Conhecimento”.
O conceito de Yoga implica tradicionalmente:
1) O Yoga comporta a união do finito (Jivátman) e do Infinito (Parátman).
2) O Yoga apela para uma energia mental que disciplina o espírito (Manas).
3) Segundo a descrição encontrada nos Upanichadas, é a fusão absoluta do indivíduo no Universal.
4) O Yoga é o estado absolutamente puro (satva), em que o homem se liberta da ignorância (avidhya) e atinge a realização espio ritual suprema.
"O Yoga prepara o caminho que conduz à iluminação espiritual e finalmente à salvação. O que quer dizer que o Yoga pretende dar ao espírito o bem supremo, que transforma os obstáculos materiais em aliados, de tal forma que a própria natureza se encontra finalmente exaltada com sua luz própria e se retira do campo de batalha."
[Comprendre Ia Religion Hindoue, de Usha Chatterji, pág. 88].
O yogue deve aprender a considerar todas as coisas sob a sua verdadeira luz, porque só a verdade pode permitir-lhe atingir o Parátman (o Supremo). A supressão dos apetites e dos desejos terrestres constitui a primeira etapa nesse caminho. Para romper a continuidade da cadela da vida é preciso que se recorra ao Yoga. O yogue não deve esperar conhecer uma forma superior de existência após a morte, como por exemplo, tornar-se um deus ou um espírito puro. Nisso são idênticos os sistemas Yoga do budismo, do jainismo e do hinduísmo. O mundo fenomenal, transitório, deve desaparecer gradualmente. O Átman pode então entrar verdadeiramente em contacto com o Parátman.
O yogue, uma vez atingido esse estado, prova um sentimento de desapego total, conhecido pelo nome de "paravairagya". E somente então se torna possível uma visão clara do Atman.
São os seguintes os obstáculos que podem surgir no caminho do yoga:
1) A enfermidade - O yoga pode, decerto, ajudar a conservar o corpo em perfeita saúde, mas é preciso estar perfeitamente sadio aquele que começar a dar os primeiros passos na vida yóguica. O Yoga dá aos seus adeptos uma sensibilidade sobreaguda, um controle prodigioso sobre o corpo e sobre o espírito (até mesmo o poder de morrer por um ato de vontade). Mas tudo isto deve ser consagrado a um só fim: a união com o Absoluto. Esses poderes perdem toda a significação (e desaparecem rapidamente) quando utilizados para a glorificação pessoal. Tornam-se instrumentos que não podem encontrar em si mesmos a própria justificação.
2) A ociosidade - Dos três estados de espírito existentes, o yogue deve afastar dois, o estado Rajásico e o estado Tamásico, e acantonar-se no estado do satva, o único que conduz ao verdadeiro caminho do Yoga.
3) A dúvida - Ele não deve duvidar nem de si mesmo, nem do valor do que ele busca. Sem uma fé absoluta na Verdade Suprema ele não pode abraçar a nova vida. Tudo lhe pareceria demasiadamente árduo.
4) A falta de concentração - O espírito deve concentrar-se num único pensamento: o aperfeiçoamento espiritual. Todos os outros cuidados devem desaparecer.
5) O egoísmo e o apego desordenado ao mundo - O yogue deve persuadir-se desde o começo de que este mundo fenomenal é ilusório e passageiro, e assim, se ele quiser atingir a mais alta espiritualidade e a libertação, é-lhe preciso desfazer-se da falsa concepção do mundo ordinário.
Só depois de ter superado esses obstáculos é que o rogue se convencerá de que nada prende o Átman ao mundo material sob seus diversos aspectos. E quando ele tiver compreendido que esses liames e essas cadeias nada mais são que simples invenções do espírito humano, ele terá encontrado o estado original de pureza que lhe permitirá entrar em contacto com o Divino e fundir-se finalmente n’Ele.


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