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Fundamentos Estéticos da Arte Hinduísta

A obra de arte, estátua ou templo, deve provocar uma impressão estética que as escrituras budistas em língua pali chamam samvega, palavra que significa um estado de agitação, de medo, de terror mesmo, ou de paz, de calma divina produzida por uma experiência mental; este estado ultrapassa o plano físico e pode traduzir-se numa emoção dilacerante. E a experiência que se pode sentir diante de uma obra de arte que nos impressiona, escreve Coomaraswamy, na qual distingue duas fases: a primeira, violenta, brusca, de surpresa, que pode comparar-se à chicotada que sobressalta o cavalo; e a segunda, uma experiência de paz transformante, de alegria contemplativa e realizadora.
Os tratados de estética hindu, de poética sânscrita, analisaram este fenômeno que denominam rasa, palavra que significa «essência, substância, gosto»; é o sabor da obra de arte, o sentimento que desperta. Os autores classificaram-no em oito categorias: o sentimento erótico, cósmico, patético, de furor, heróico, de terror, de ódio, do maravilhoso. Os elementos que constituem estes rasas chamam-se bhavas, entre os quais figuram as manifestações exteriores que acompanham este sentimento interior (lágrimas, desfalecimento, pasmo, etc.). Qualquer obra de arte está iluminada pelo rasa que é a sua alma; não é o caráter objetivo da criação artística, mas a experiência humana, que provoca a atividade espiritual, asvada, que desperta e forma a experiência estética pura e desinteressada, uma espécie de êxtase intelectual ou, melhor, intuitivo, se o espectador possui a capacidade e a sensibilidade requeridas. A tripla representação de Siva na gruta-santuário de Elefanta é um exemplo do que dizemos; esse busto tricéfalo de oito metros por seis, esculpido na rocha da gruta, representa o Grande Deus em três aspectos: o rosto central, majestoso e aprazível, é o aspecto impassível do Ser; o da esquerda, é o aspecto renovador, transformador, de Siva, enquanto Deus da,morte; o da direita, é o aspecto feminino, conservador e protetor da vida. Constitui um conjunto admirável que data dos séculos VIII e IX d. .C. É uma das obras-primas da arte hindu, uma representação de conceitos meta físicos na pedra, que sobressai da penumbra da gruta-santuário em que está esculpida. Este êxtase estético pode sobrevir também com a visão de um templo. A Índia teve os seus edifícios de madeira, mas o clima destruiu há muito essas frágeis construções. Apenas restam os testemunhos de pedra, seja em forma de esculturas ou de templos.

Técnicas da Arte Hindu

Os textos tradicionais das técnicas são os Shilpa shastras, que formulam as leis que deve seguir o artista, para não se desviar dos cânones tradicionais, criadores do ritmo, da força vital que deve animar a obra de arte. Apresentados em versículos mnemotécnicos que os artesã os sabem de memória, dão medidas, formas, desenhos simbólicos autorizados, advertências severas destinadas aos obreiros, para evitar que imprimam aos objetos uma forma excêntrica, ou de mau augúrio. Não se omite nada, nem o tamanho, nem o contorno, nem as proporções numéricas, nem os gestos: tudo está estritamente determinado. Resta o gênio do escultor ou do arquiteto que podem sempre, dentro dos limites destas regras, criar uma autêntica obra de arte. Vale a pena admirar o Buda de Sarnath, da escola gupta {séculos VI-VII), a idade de ouro da arte da Índia; está realizado conforme os cânones dos shastras, porém o artista desconhecido que o esculpiu foi um grande mestre.
Não há facilidade na arte hindu, ela exige esforço por parte do espectador: «a própria energia do espectador é a causa da sua experiência estética», diz o Dasharupa (IV, 47-50). Os gestos e as atitudes das imagens divinas não saem da imaginação do artista, mas obedecem a regras precisas. Por isso, os cânones da escultura distinguem as atitudes serenas, equilibradas; as ligeiramente inclinadas, para representar a meditação; as muito inclinadas, «como uma árvore sob a tormenta», para apresentar as ações violentas; e, por último, a atitude tribangha, a curiosa postura indiana caracterizada pelas três posições diferentes dadas à parte superior, média e inferior do corpo, parecida com uma liana flexível ondulando ao vento.
As imagens também foram classificadas segundo o tamanho: os deuses deviam ser gigantescos, sobre-humanos, e os espíritos servidores, de estatura menor; os shastras precisavam os gestos dos braços, dos pés e, sobretudo, das mãos, os mudrãs. Como nota curiosa, encontramos aqui os mesmos cânones que os dos textos sagrados sobre a dança clássica; a arte da escultura e da pintura foi no seu começo um capítulo da arte da dança. Os diferentes elementos dos movimentos da dança, karanas e angaharas, correspondem aos gestos dos braços, mãos, dedos, rosto, olhos, sobrancelhas, corpo, pernas e pés. O tratamento da dança, o Bharata natya shastra, nada deixou ao acaso, e o espetáculo de uma bailarina clássica é ainda hoje uma maravilha. Os artistas e os escultores hindus colheram estas - regras e fizeram, das suas imagens, divinas formas dançantes de uma ligeireza e uma graça etéreas incomparáveis. Os belos bronzes do sul do país, que representam Siva dançando a dança cósmica, rodeado das chamas da vida, vestido com uma pele de tigre e espezinhando o monstro da ignorância, são um belo exemplo destas regras.
Todas as esculturas adotam gestos diferentes, mudrãs, que constituem uma linguagem simbólica preciosa que - se encontra nas figuras da dança clássica, nos gestos de culto tântrico dos deuses e das deusas; existe o gesto do ensinamento, criado muitas vezes nos budas, o do testemunho da terra, o da dádiva, o da segurança divina, o que atrai o fogo, o da meditação, etc. Estes mudrãs às vezes são acompanhados da multiplicação de braços, símbolo dos poderes divinos realçados pelos objetos sagrados que esses braços seguram: o disco da guerra, o raio, o búzio, o alaúde, o rosário, a clava, o chocalho, o tridente, o machado, etc. As formas divinas distinguem-se entre si graças a estes atributos e segundo a cor ou o material de que são feitos. O ideal de beleza buscado pelo artista é puramente religioso, e deve adequar-se aos cânones tradicionais. É uma arte majestosamente impessoal, onde «a arte pela arte» ocidental não tem sentido. Pretender explicar a arte hindu segundo os conceitos do gosto do artista da sua sensibilidade, do seu juízo pessoal, e um engano total. Convém acrescentar, além disto, que esta arte é rigorosamente anônima.
Na Índia restam poucas pinturas, apenas alguns frescos; o clima e as guerras, as destruições muçulmanas fizeram-nas desaparecer. Os tesouros de Ajanta (séculos II a. C. - VII d. C.) puderam-se conservar por terem ficado sepultados sob os desabamentos das pedras da montanha onde os mosteiros e as grutas-santuários tinham sido escavados. Durante mil anos, esses tesouros esculturais e pictóricos permaneceram enterrados até que, por acaso, reapareceram em 1819. Esses admiráveis frescos murais seguem os mesmos cânones que a escultura e obedecem às mesmas regras, mas com mais liberdade. O conjunto é de uma graça extrema, e a Índia considera Ajanta, com toda a razão, como um dos seus principais centros artísticos.

in Riviere, J. Arte Oriental. Rio de Janeiro: Salvat, 1979


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