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Uma Arte Religiosa

A Índia é um país de contrastes e há que admitir que relativamente poucos ocidentais chegaram a conhecer a sua alma. O viajante que percorre este imenso país foi formado pela cultura mediterrânica, pela religião judaico-grega, pela arte greco-romana, pela herança do esplendor de Roma. Na Índia tudo o surpreende, lhe é estranho, diferente: as coisas e a gente, as paisagens e o clima, as formas religiosas e as suas expressões plásticas.
Para ele a arte da Índia é incompreensível à primeira vista, como o é também a sua filosofia de vida. Compreender esta estética supõe um grande esforço por parte de qualquer ocidental, porque nenhum dos seus conceitos lhe é familiar. A nossa intenção é torná-los mais próximos.
A principal dificuldade do Ocidente materialista, cartesiano, cético, praticamente ateu, para compreender a arte tradicional e clássica da Índia reside no fato de se tratar, essencialmente, de uma estética religiosa. A Índia dos nossos dias recorda a cristandade medieval dos séculos XII e XIII; esta comparação pode aplicar-se não apenas aos modos de vida e de pensamento hindus, como também às suas concepções estéticas.
As teorias da arte indiana aproximam-se das exposições filosóficas dos grandes teólogos medievais do Ocidente: a estética da luz, com João Escoto Erígena e Ulrico de Estrasburgo; a estética metafísica de São Boaventura, de Santo Alberto Magno; os simbolistas platônicos, os alegoristas como Ricardo ; de São Vitor; os sistemas estéticos medievais, como os de Tomás de Verceil, encontram-se todos na arte hindu. Se a arte da Índia pode representar as imagens dos deuses e edificar os templos que serão suas moradas, não se trata apenas de imitar a beleza das formas humanas, que foi o ideal grego, mas antes de dar uma expressão à mensagem espiritual, que a forma divina particular considerou que devia chegar aos homens. A beleza procurada na Índia é de origem metafísica. Evoca de maneira irresistível o pensamento de Dionísio o Areopagita, que declarou ser discípulo de São Paulo depois de ter escutado em Atenas o seu discurso sobre o Deus Desconhecido (Actos, XVII, 22 e seg.); chama-se-lhe o Pseudo-Dionísio porque, na realidade, trata-se de um sírio que escreveu em grego por volta do século V. Recebeu uma forte influência de Platão e tentou unificar os ensinamentos deste com os do cristianismo. A sua descrição das hierarquias celestes, dos níveis de manifestação do Ser nos seus graus descendentes e a sua presença inefável em cada coisa, o conceito de luz que o autor utiliza em toda a sua obra, encontram-se muito perto do pensamento da Índia. Platão e os filósofos asiáticos falam muitas vezes a mesma linguagem.
A partir de agora teremos em conta as duas concepções diametralmente opostas da função artística no Ocidente e ao Oriente: a primeira, deve ser a ocasião para uma experiência sensível, afável, agradável, curiosa e talvez estranha, geralmente intelectual na arte moderna; a outra é uma prece, uma contemplação, uma penetração nos níveis superiores da psique humana. A Índia inclui o seu conceito de arte na filosofia de vida. Para resumir isto eu poucas palavras - de acordo com a escola filosófica do vedãnta que domina o pensamento hindu -, pode-se dizer que o mundo dos fenômenos considerado não como uma realidade em si, mas como um aspecto relativo do Ser (Deus), do Ignorado, como uma aparência, mãyã; este Ser, esta Realidade infinita, é profundamente imanente na sua manifestação, na Natureza, no homem, não quantitativa, mas qualitativamente. Tudo está impregnado da sua essência, que mantém o cosmos numa ordem soberana e eterna o dharma; porém o Absoluto em Si mesmo é acósmico. Realiza-se por uma comunhão intuitiva direta e não pol um conhecimento conceptual. O eu interior do homem é idêntico a este absoluto, o Brama do hinduísmo. O mundo - fenomênico em que os seres humanos vão e vêm, numa série sem fim de reencarnações, é uma condição inferior : e ilusória; a libertação final é a saída desse ciclo de dores, de miséria e de morte sem fim. Esta libertação obtém-se com uma severa ética, com uma grande fé na Verdade eterna e com as técnicas de reintegração espiritual que ensina o ioga. Esta é, em síntese, a essência do hinduísmo e, em certa medida, do budismo.
A obra de arte é um meio de reintegração, um sacramento, samskarana, como escreve Ananda K. Coomaraswamy baseando-se nos textos védicos; a aproximação ao divino só pode fazer-se através das formas e das imagens que representam os seus poderes, as suas qualidades. Para não cair numa degradação do sagrado com uma figuração naturalista, a estética hindu in- ventou uma técnica simbólica, para explicar esta hierarquia dos poderes divinos, dos deuses; a forma humana cor- rente transforma-se em pura criação mental obtida, como se verá, com a prática do ioga por parte do artista. Em vez de se degradar nos corpos humanos - onde a beleza sensual desempenha o principal papel, como nos gregos- e de se converter afinal em imagens antropomórficas sem nenhum elemento sagrado, a forma humana converte-se na Índia na representação sobre-humana dos poderes espirituais; a beleza sensual desapareceu e foi substituída pela adição de símbolos evocadores do sagrado. Esta estética, que se encontra entre os primitivos no Egito e no México, é de um surrealismo antecipado; as cabeças e os braços multiplicam-se, as terríficas formas animais sobrepõem-se ao corpo humano, e as dimensões são por vezes gigantescas. Recorreu-se a tudo para provocar o terror e o poder do sagrado, o pânico e o mistério dos mundos sobre-humanos, a presença viva e angustiosa das forças espirituais. A devoção enjoativa e distinta dos devotos ocidentais modernos não tem qualquer relação com este contato vivo e leal do espiritual, cujas descrições aparecem tanto nos místicos ocidentais como nos orientais; vemo-los arquejantes e esmagados pela força insuportável do divino. A estatuária tibetana e chinesa budista é muito interessante nesse aspecto; as entidades protetoras do budismo, na sua gesticulante figuração de pesadelo, opõem-se esteticamente à calma sobre-humana dos bodhissattvas. Há que ter presente que não se trata nem de demônios nem de deuses, à imagem da radical dicotomia judaico-cristã; no pensamento asiático, são forças vivas e ativas na grande hierarquia cósmica, sempre ambivalentes, destruidoras ou benfeitoras segundo a sua situação no universo, repelidas e adoradas ao mesmo tempo.

in Riviere, J. Arte Oriental. Rio de Janeiro: Salvat, 1979


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