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A História Material

Singularidades da História Indiana

Para estudar a História da Índia é necessário ter em mente que as concepções que regem a construção do passado, para os indianos, não são as mesmas que as nossas. Nem ao menos esses parâmetros são semelhantes ao de outros historiadores antigos, tais como o grego Tucídides e do Chinês Sima Qian. Não se encontra na Índia Antiga, pois, nenhum tipo de cronologia ou estudo da história tal como entendemos. Isso porque desde cedo essa cultura se estruturou na busca de outros valores que não necessariamente lidavam com as idéias de tempo necessárias à construção de um passado histórico (como nós entendemos, claro). É fundamental compreender que os elementos mais importantes para essa civilização eram aqueles tidos como verdades atemporais e imutáveis, manifestações tangíveis de um ciclo cósmico que deveria ser dominada como forma de integração com a natureza do Universo. Por conseguinte, a organização social e cultural da Índia antiga deve ser entendida por uma plêiade de valores que, mesmo aglutinados tecnicamente, devem ser conhecidos e manipulados antes de iniciarmos um estudo mais aprofundado sobre a mesma. Como referencial temporal utilizaremos, deste modo, a organização da sociedade indiana de suas origens até o primeiro império pan-hindu, a dinastia Maurya, no séc. -4.

A Índia dá mais importância à "Essência", ao "Absoluto", do que à manifestação material alterável e transitória, do mundo dos fenômenos. Esta manifestação tem um caráter ilusório, a “maya”; daí a teoria que o valor absoluto dos indivíduos é minimizado, e que os acontecimentos históricos ordem importância e convertem-se em repetições de circunstância, numa série indefinida de ciclos que se repetem. O mito substitui facilmente a História, e já se pôde observar que o indiano carece totalmente de sentido histórico; a fixação das grandes datas da antiguidade indiana foi obra de orientalistas ocidentais. Esta tendência provoca um certo repúdio pelo mundo objetivo natural; as percepções intuitivas, obtidas pelas técnicas de meditação, são tão válidas para o indiano como suas percepções sensoriais e têm inclusive maior realidade, porque provêm de esferas superiores da manifestação, mais próximas da "Realidade Suprema". Para o pensamento indiano, a vontade não consiste no acordo entre o conhecimento subjetivo e o conhecimento de natureza objetiva do mundo, como acontece no Ocidente, mas sim e acima de tudo é uma atitude moral, ética, uma forma de viver espiritualmente de acordo com as "Leis Eternas". Com esta abertura para "o alto", o indiano escapa ao desespero existencialista ocidental
Riviere, J. Oriente, Ocidente (1979).

Estudos arqueológicos e filológicos

Tendo em vista os caracteres específicos desta história indiana, torna-se indispensável realizar uma conjunção dos estudos lingüísticos com os vestígios materiais trazidos pela arqueologia. Os estudos da literatura indiana dão indicativos da evolução dos processos culturais e mentais que permearam a organização da civilização indiana, mas elas sofrem de um grande problema de datação. Esta mesma questão aparece em relação a arqueologia, que no entanto nos dá noções mais precisas sobre a organização material e sobre o cotidiano desta sociedade. Logo, os modelos construídos para explicar a História Indiana ainda são frágeis em alguns pontos, tais como contexto, tempo, etc, mas são extremamente férteis no campo cultural e são relativamente bem providos de elementos materiais (Leite, 1999).

Concepções sobre a formação da civilização indiana: Harappa, Mohenjo Daro, Dasas e Árias

Apesar de conhecermos mais profusamente o período védico da cultura indiana (a partir do século -15), o território indiano antigo (que hoje abrange não só a Índia mas também Paquistão e Afeganistão) nos deixou referências de culturas mais antigas. Essas apareceram nas ruínas de duas cidades, Harappa e Mohenjo Daro, devidamente estudadas mas não ainda totalmente compreendidas. Não se sabe também se esses núcleos urbanos tinham algum vínculo com as populações dasas (Wheeler, 1969 e Alchin, 1998). Elas eram, no entanto, bastante avançadas tecnicamente.

A cultura dasa (conhecida também como dravídica) parecia agrupar um vasto grupo de populações autóctones, estruturadas em tribos e cidades-estado com crenças religiosas semelhantes, e uma sociedade bem menos hierarquizada do que seria a Ária. Praticariam a agricultura e teriam tido poucos contatos com outros povos da época.
São os arianos (ou árias) porém, que iriam realmente construir a sociedade védica. Eles compunham parte dos povos que em levas sucessivas vieram a colonizar a Europa e parte da Ásia, sendo conhecidos como “Indo-europeus” (Eliade, 1978). Ao contrário do que se pensa, os arianos não impuseram um sistema de dominação avassaladora, mas gradual, baseado num sistema de alianças com tribos dasas onde os momentos de conflito se alternaram com fases de convivência amistosa e fértil (Courtilier, 1979; Wheeler, 1969 e Frawley, 1998). Existem hipóteses variadas para explicar esta relação.

Os arianos trouxeram uma cultura pastoril, bem representada nos Vedas (como veremos adiante), guerreira, politeísta e estratificada, que foi responsável pela criação das varnas (castas) na sociedade indiana. No entanto, veremos que a construção da sociedade védica é resultante da fusão dessas duas civilizações, que conjugou os elementos necessários para a estruturação de uma cultura repleta de concepções espirituais e filosóficas, mas inserida numa realidade material bastante complexa.

Esta civilização nova, dita do Indo ou de Mohenjo-Daro e Harappa, segundo o nome dos dois lugares explorados, parece ter representado um papel capital na formação da indianidade. Ela é portadora, com efeito, de germes dessa personalidade que eclodirá perto de dois milênios mais tarde e isso apesar de um longo eclipse, de um sono prolongado e perturbador, depois que essa civilização brilhante, essencialmente urbana na sua manifestação, mas de essência agrária, se apagou enigmaticamente por volta de 1500 antes da nossa era. Ela oferece-nos, em suma, elementos que nos remetem à civilização sumeriana, sua contemporânea, sem por isso se apresentar como uma província desligada dessa prestigiosa cultura mesopotâmica. A escrita indiana, para dar só um exemplo, não tem rigorosamente nada em comum com a da Suméria. Compreende-se mal, como a civilização do Indo chegou tão depressa a um estágio urbano tão avançado e bem organizado; a fase preparatória necessária escapa-nos. Constatamos simplesmente que uma plêiade de cidades - perto de oitenta foram encontradas - coexistiram por, aproximadamente, um milênio numa área geográfica muito extensa, comparável à Europa ocidental, desde o mar de Oman até ao Ganges. As duas primeiras cidades desenterradas nos anos vinte, Mohenjo-Daro e Harappa, provocaram o espanto nos especialistas; até então nem se suspeitava da existência dessa civilização! Estas cidades-estado cercavam-se de espessas muralhas, que nos alam de ameaças e de insegurança, tanto quanto as imponentes cidadelas, que freqüentemente as coroam e zelam pela sua segurança e seus bairros dispostos como um tabuleiro de damas, cortados por largas artérias orientadas na direção do vento. Normalmente utilizava-se o tijolo cozido para as infra-estruturas e o tijolo seco ao sol para os alicerces. Canalizações muito aperfeiçoadas levavam a água do rio mais próximo até à mais humilde habitação; outras, constituídas por regos, situados no meio das artérias, cobertos por pedras achatadas, drenavam as águas sujas e pluviais; estes esgotos coletores desembocavam em poços de decantação. Esta preocupação pela higiene e bem-estar geral apresenta um caráter excepcional para a época, que se preocupava pouco com a sorte dos humildes. [...] Nos bairros públicos encontraram-se instalações imponentes de celeiros, que possuíam um engenhoso sistema de isolamento e ventilação; sua importância sugere uma organização social avançada e estruturada. Alguns comparam estes celeiros públicos a verdadeiros bancos nacionais, servindo o cereal de moeda de troca, de unidade de referência. Todas as mercadorias eram avaliadas por medidas de cereais. Aliás, a mais importante ocupação e a prosperidade os Indianos repousava na intensa atividade agrícola, que proporcionou a atividade citadina complementar. Ficamos verdadeiramente admirados de, nesses tempos profundamente religiosos, não encontrarmos templos ou vestígios da estatuária que os povoaria, como foi regra noutros lugares durante toda a antiguidade, nem sequer estatuetas de adoradores em atitude de oração diante de sua divindade. Podemos concluir que a religião ficava num plano secundário? Num plano inferior, talvez, ao da religião no Egito e Mesopotâmia, ainda que pareça incrível, que a religião fosse negligenciada nesta época e nesta Índia donde partirá o budismo. Sem dúvida revestir-se-ia de formas que desconhecemos ainda. As figurinhas de pedra ou bronze encontradas (somente onze peças fragmentadas de pequeno formato para todo o Mohenjo-Daro) e grande quantidade de figurinhas em argila, contribuem para uma certa documentação sobre esta sociedade e seus meios de expressão.
Anequin, G. Quarenta séculos de indianidade. (1979)

Os textos históricos e suas funções

Para concluir esta primeira parte, devemos conhecer a documentação com a qual trabalhamos. A literatura indiana antiga é rica em quantidade de textos, mas restrita em alguns aspectos: não encontraremos, por exemplo, praticamente nenhum texto sobre História propriamente dita: na verdade, o primeiro texto do gênero foi escrito por um grego (A História Indika, de Megastenes, sobre o império Maurya, hoje perdida e cujos fragmentos se encontram na obra de Arriano). Podemos, no entanto, estabelecer uma série de clivagens sobre sua organização social, sobre sua cultura e sobre o pensamento, tendo em vista a profusão de textos religiosos e jurídicos existentes, além de uma série de histórias e textos mitológicos. Em linhas gerais, temos a possibilidade de organizar estes documentos da seguinte forma:

Vedas: são os primeiros textos da literatura védica, sendo o principal o Rig Veda, tido como revelação divina. Complementam-no o Sama e o Yajur, conquanto o Atharva tenha sido absorvido apenas tardiamente por seu conteúdo mágico-popular. Compõe-se de textos de caráter religioso e explicativo, abordando inúmeros aspectos rituais da cultura ária.

Aranyakas e Bramanas: representam uma espécie de transição entre os Vedas e os Upanishads, sendo que estes últimos são os textos mais importantes.

Upanishads: representam a “conclusão” da literatura védica. Sua construção é bastante diferente dos Vedas, que guardavam o que havia de mais importante na cultura ariana, em contraposição aos textos upanishadicos que tratam do que há de mais espiritualizado na cultura védica. São estes textos que apresentam de forma clara as questões do karma, da vida, do cosmos, das técnicas de domínio do corpo de da mente, etc. manifestando a fusão dos elementos dasas com os árias. Existem mais de duzentos Upanishads, versando sobre os mais diversos assuntos, mas alguns são considerados como fundamentais até os dias de hoje (tal como Kena, Katha, Mundaka, Isha, etc.).

Puranas: são as “histórias” indianas, mais próximas de fábulas e lendas do que propriamente de uma história científica. Mas como algumas guardam elementos religiosos importantes, tal diferença não era considerada pelos indianos. Como exemplos desses textos temos os famosos Mahabharata e Ramayana , além de textos como Srimad Bhagavatam e o Vetalapancavimsatika, conhecido como “Contos do Vampiro”.

Além desses textos, podemos citar igualmente os textos jurídicos dos quais destacamos As leis de Manu (Manavadharmashastra) e o Artashastra, além dos textos próprios de conduta. Ainda existem os textos “mundanos”, tais como de medicina, matemática ou de relações sociais, do qual destacamos o Kama sutra (feito num período posterior ao tratado, porém). Cada um deles representa para a cultura indiana um papel específico, que devemos buscar compreender de forma bem clara (Renou, 1968).

As literaturas indianas são religiosas em sua origem. É graças aos poetas religiosos panteístas, adoradores das divindades da aurora, das montanhas e dos rios, que temos os primeiros textos literários - os Vedas. Seus autores viveram há 3.500 anos, no noroeste do subcontinente indiano. Esse era habitado por tribos indo-européias que conquistaram toda a bacia do rio Indo. Os Vedas, arquivos da balbuciante civilização hindu e monumento literário, dividem-se em quatro coletâneas de hinos e cânticos (Rig Veda, Yajur Veda, Sama Veda e Atharva Veda) dirigidos às suas divindades tutelares. Literalmente, Veda significa “conhecimento”. Um conhecimento de ordem essencialmente mítica e espiritual, devido à crença, entre os hindus, de que as compilações védicas não são inspiração humana, mas nascidas da própria boca do demiurgo Brahma. Textos revelados que não poderiam se anunciar a não ser em sânscrito, a língua dos deuses. Durante o período védico, que dura quase mil anos, o sânscrito torna-se a língua franca, codificada desde o século 6 a.C. pelo gramático Panini. No entanto, mesmo nessa época, a Índia já era multilíngue e a escolha desta ou daquela língua pelos poetas e bardos tinha implicações sociais e religiosas importantes. O Buda, por exemplo, aparece no século 6 a.C. Seu ensinamento era dissonante com o elitismo brâmane. Fazia suas pregações em dialetos populares como o pali ou o prakrit. Tesouro da literatura narrativa mundial, os Jataka, ou as narrativas das vidas anteriores de Buda, (sendo que algumas foram contadas pelo Mestre em pessoa), estão em pali, língua de contestação da rigidez do hinduísmo e do sistema de castas.
Chanda, T. Dos Vedas ao Kama Sutra, 2007.