Índice

Religião e Pensamento

Estrutura social e Política - as Varnas

Desde cedo os indianos se organizaram em cidades-estado, que por vezes se expandiram em pequenos reinos governados pelos Rajas. Somente no século -6. é que um desses Rajas, conhecido como Bimbsara, começou um processo de unificação que deu condições num período posterior ao surgimento do Império Maurya. Provavelmente essa organização política anterior se devia as concentrações étnicas diferenciadas que compunham o mosaico de reinos e povos da Índia.

As varnas (ou castas) têm relação direta com essa organização social: elas foram constituídas ao longo do processo de integração entre os arianos e os dasas. Dividiam-se entre Bramanes (religiosos), khsatryas (guerreiros), vasyas (comerciantes e fazendeiros) e sudras (trabalhadores, escravos, camponeses, etc) além dos párias, grupo que teoricamente não tinha nem inserção social. Provavelmente algo dessa organização já existia entre os arianos, mas ela foi transplantada para a civilização védica utilizando as concepções sobre reencarnação como justificativa existencial, alijando grande parte dos dasas e estrangeiros para as classes mais baixas.

A casta (varna, jati) e um fenômeno muito amplo, que excede os problemas religiosos. Apenas o referiremos aqui na medida em que a casta tem uma incidência na religião ou e regida por esta. Resulta claro que, das três grandes funções sociais primitivas, apenas a primeira, a dos brâmanes, é de essência religiosa. Os brâmanes, independentemente das ocupações que tiveram, são em princípio os detentores do poder sagrado: “o próprio nascimento do brâmane é a encarnação eterna da Lei” (Manu). O seu dever resume-se nisto: “ensinar o Veda”. O seu modo de vida, segundo a antiga Smriti, consiste em sacrificar por outrem (portanto, em oficiar como sacerdote) e receber donativos. Mas as três outras classes participam igualmente nas coisas sagradas, em graus diversos. A segunda, dos kshatriyas, cuja atividade própria é a das armas, deve, segundo a Smriti, “sacrificar (aos seus próprios fins), estudar o Veda e fazer donativos”. O rei, que resume a essência dos kshatriyas, e uma emanação da divindade, um “deus com forma de homem”, como diz Manu, e as grandes cerimônias reais, mesmo na Índia pós - védica, tem o caráter de feiras religiosas: são as únicas sobrevivências do antigo culto solene oferecido as grandes divindades. A terceira classe, dos vaiçyas, consagrados em principia a criação de gado, agricultura e comercio, tem os mesmos deveres e cargos que os kshatriyas, embora sem dúvida em menor medida. Quanto a quarta, os çudras, que estão ao serviço das outras três classes, mantêm-se aparentemente excluída da religião, mas os textos antigos reconhecem-lhe alguns direitos, e todo o esforço de várias seitas tendeu para a integrar ou reintegrar no sistema bramânico. Quanto à poeira das castas «modernas», oriundas teoricamente das quatro grandes classes, a sua atividade distingue-as sem dúvida (assim como o habitat e, eventualmente, a pertença étnica) muito mais que a marca religiosa, que, não obstante, desempenhou um papel na classificação. Entre os brâmanes (o único grupo que permaneceu relativamente coerente), a maior parte abandonou as funções sacerdotais sem incorrer em qualquer descrédito (já Manu dizia que “os brâmanes devem ser honrados, embora se dediquem a ocupações vulgares de toda a espécie, porque cada um deles é uma grande divindade”), desde que a atividade não seja daquelas que passam por impuras por natureza. A investidura religiosa é comum a todos os «nascidos duas vezes» (dvija), ou seja, aos membros das três primeiras classes. A expulsão da casta representa uma espécie de excomunhão, e a maior parte das regras de casta baseiam-se na noção de segregação, que resulta do valor religioso atribuído à pureza e a impureza. Quanto à própria origem das castas, viu-se nela um fato religioso. Isto aplica-se na medida em que é religiosa a oposição hierárquica entre o puro e o impuro.
Renou, L. O Hinduísmo – Antologia de Textos Hindusístas. 1969

As correntes religiosas e as escolas de pensamento

Podemos organizar a religiosidade indiana em três grandes correntes: Bramanismo, Shivaísmo e Vishnuísmo. A primeira trata das antigas concepções védicos brâmanes, incluindo os cultos ao soma, aos deuses arianos (Indra, Agni, Suria), e são responsáveis pela manutenção das estruturas sociais através de reprodução de cultos e rituais de caráter restrito e clássico.
Já o Shivaísmo, tal como o Vishnuísmo são desdobramentos populares da absorção e expansão dos cultos aos deuses Shiva e Vishnu, além de seus consortes e aparentados. Atualmente são os cultos mais difundidos na sociedade, e é possível que mesmo em tempos antigos também fossem os mais abrangentes: isso porque eles surgiram, como foi dito, no seio da sociedade, com cerimônias populares e abertas, e conseqüentemente mais simpáticas à todas as varnas. Juntam-se a essas duas religiões que se difundiram perto da era Maurya, o jainismo e o budismo (que teriam surgido no século VI a.C.). Ambos são desdobramentos da cultura védica, mas enquanto o primeiro se propunha a radicalizar o aspecto do ascetismo, o segundo propunha uma salvação universal e proselitista, o que o destacou do resto da sociedade como uma espécie de nova religião.

O vedismo ou religião do Veda constitui o aspecto mais antigo sob o qual nos são apresentadas as formas religiosas na Índia. Os textos védicos, que são os primeiros monumentos literários da Índia (e dos mais antigos da humanidade), proporcionam simultaneamente o testemunho mais arcaico da religião a que se chama ora bramanismo, ora hinduísmo. Se houvesse que limitar as duas palavras, bramanismo deveria designar a religião das épocas antigas e confundir-se depois, em parte ou na totalidade, com o vedismo, enquanto o hinduísmo visaria mais a evolução religiosa no seu conjunto, quer a partir do Veda, quer após o período védico. A religião védica é a que os invasores arianos levaram consigo quando irromperam no Noroeste da Índia (o Panjâb, bacia do alto Indo), entre 2100 e 1500 antes da nossa era. O fundo remonta a dados que se deixam caracterizar como «indo-iranianos». Voltamos a encontrá-los quando observamos o que, no Irão, é anterior à reforma de Zoroastro e, ao mesmo tempo, homólogo aos fatos conhecidos na Índia «védica»: é a crença em certas noções fundamentais, numa dupla hierarquia divina -os daivas e os asuras; por outro lado, o culto do Fogo, os sacrifícios animais, os sacrifícios de soma. Mas, para além desta religião indo-iraniana, que não passou de uma etapa, existe um plano Indo-europeu. A religião indo-européia consistia numa rede de crenças já complexas, ao mesmo tempo naturalistas, rituais e «sociais». Sob um determinado ângulo, estavam repartidas em funções: uma propriamente religiosa, sacerdotal e jurídica, outra representativa do poder temporal e uma terceira de tipo econômico. Mas a religião védica só se explica numa medida muito reduzida por essa dupla herança indo-iraniana ou indo-européia. Em contacto com elementos autóctones ou pelo efeito de uma rápida evolução interna, as formas antigas foram enriquecidas ou alteradas. Absorveram uma parte daquilo a que se pode chamar o hinduísmo «primitivo» de que nada conhecemos, à parte precisamente os vestígios que se encontram na religião védica e esclarecem quando comparados com fatos atestados na Índia ulterior.
Renou, L. O Hinduísmo. (1968)

As escolas de pensamento

Classicamente se organizaram as escolas filosóficas da Índia em seis caminhos (darsanas): Nyaya, Vaishesika, Sankya, Ioga, Mimasa e Vedanta. Cada uma dessas escolas possui características próprias em suas abordagens sobre os conceitos de reencarnação, verdades cósmicas e Maya (ilusão material). No entanto, são igualmente consideradas como “diversos caminhos num mapa que leva ao mesmo lugar”.

Existia ainda uma escola materialista, chamada Carvaka, que trata apenas da existência atual, mas ela tinha pouca representatividade. Em geral quase todas essas correntes tem, também, seus períodos de datação bastante extensos, o que faz com que alguns pesquisadores prefiram determinar seus momentos de surgimento nos períodos mais recentes possíveis. Aqui utilizamos as datas mais recuadas possíveis, apenas como referência. Analisemos essas escolas:

Nyaya: teria surgido no século -4. com Gautama (não confundir com Buda), e defendia que a iluminação e a salvação só poderiam ser obtidas segundo a compreensão e o domínio de categorias específicas de conhecimento sobre metafísica, matéria e natureza.

Vaishesika: parece ter sido anterior à Nyaya, e talvez a mais antiga de todas as escolas. Criada por Kananda, enfatizava o conhecimento e a experiência pessoal como formas de descoberta dos mecanismos do cosmos. Ainda assim, esse mesmo conhecimento estaria atrelado a uma série de conceitos já existentes sobre virtude, controle e pensamento.

Mimasa: no mesmo séc. -4., Jaimini teria fundado a escola Mimasa, que basearia sua concepção de salvação no domínio de conteúdo dos Vedas, tidos como eternos e completos em suas revelações. Desta forma, a Mimasa entendia que essa libertação só poderia ser atingida pelo domínio das ações no contexto social, tidos como estruturados pelo divino. Os homens seriam livres para determinar essas suas ações, mas corriam o risco de atribular seu Karma.

Vedanta: esta escola parece ter sido uma evolução da Mimasa, fundada por Badarayana, sendo difícil situá-la no tempo (as referencias apontam para uma época próxima de Jaimini, mas o texto básico dessa escola só surge dois séculos depois). Embora seu ponto de partida sejam também os Vedas, suas proposições se respaldam no fato de que o conhecimento dos conteúdos sagrados só poderia ser atingido igualmente por técnicas transcendentes de controle do corpo e da mente.

Sankya: diz-se que o fundador dessa escola , Kapila, viveu no século -7 Uma das escolas mais famosas de todas, representa uma manifestação direta dos conhecimentos Upanishadicos. A Sankya acreditava numa libertação ascética, através da meditação e no domínio das paixões.

Yoga: a Ioga já seria praticada em suas formas físicas já entre os povos dasas. Ela aparece igualmente nos textos mais antigos, como no Bhagavad Gita, texto específico do Mahabharata. Existiam várias escolas yoguins, com os mais diversos tipos de práticas, mas elas foram devidamente agrupadas e classificadas através de Patanjali, que poderia Ter vivido entre –4-2 É semelhante à Sankya, mas muito mais técnica, enfatizando a atenção às disciplinas do corpo como forma de dominar o espírito, conquanto a Sankya propusesse o contrário.

A observação dessas várias escolas deu origem a um adágio que representa bem a civilização indiana: a unidade dentro da diversidade. Quase todas essas escolas trabalham com conceitos semelhantes, mas situam-se como caminhos diferenciados em torno do mesmo objetivo, a salvação. Elas consideram Artha (Lei social), Kama (Desejo), Dharma (Lei sagrada) e Moksha (libertação) como os quatro pilares deste conhecimento cósmico, que elimina o Maya (ilusão) (Zimmer, 1983).

Na tradição hindu, religião e filosofia formam dois aspectos inseparáveis de uma mesma coisa. A especulação desempenha sempre o seu papel, mas as diversas concepções metafísicas e cosmológicas da Índia não são doutrinas diferentes; elas são antes desenvolvimentos, segundo certos "pontos de vista", da mesma doutrina em direções variadas, mas de forma alguma incompatíveis entre si. O termo sânscrito "darchana" significa justamente "ponto de vista". Ele indica cada uma dessas concepções que partem de uma origem comum: o Veda. Os darchanas se esclarecem mutuamente e se completam. Podemos compará-los aos galhos de uma árvore que se estendem para todos os lados, partidos todos de uma mesma árvore. Nas religiões da Índia o acordo com o Veda representa a ortodoxia. Os que fundaram os darchanas - ou sistemas filosóficos - foram grandes santos, grandes místicos. Eles tinham sempre por finalidade o retorno a formas religiosas mais puras, a conservação da tradição autêntica. Esses darchanas, sistema ou escolas, em número de seis, constituem um quadro completo do Universo. Herdeiros dos Bramanas e dos Upanichades, eles ensinam a sabedoria que conduz ao Conhecimento e à Libertação. Na cultura indiana o estudo dos darchanas é indispensável. Eles já existiam nos tempos védicos, mas só na época do Vedanta é que foram desenvolvidos e formulados. Os sistemas que receberam o nome de darchanas são variadíssimos. As doutrinas budistas como as teorias materialistas, são consideradas darchanas. O mesmo se diga do materialismo de Sarvaka, tornado um darchana que traz o nome de seu fundador. Nesse sistema tudo se baseia na sensação. A inferência, a indução e a causalidade são negadas. Não há outra realidade afora os quatro elementos: terra, ar, fogo e água. Esses princípios se opõem para criar todas as coisas. O pensamento é um simples resultado dessa união. A alma e o corpo são idênticos. O texto fundamental dos Sarvaka, atribuído a Brhaspati, estava redigido em sutra, mas é o Sarvadarsanasangraha de Mádhava (século XIV) que dá a exposição mais completa do sistema materialista [L. Renou, Inde classique, Pág. 74 - t. II]. O nome de darchana aplica-se particularmente aos seis darchanas bramânicos que reconhecem antes de tudo a autoridade do Veda, dos Bramanas e dos Upanichades. A soma de suas vistas parciais compõem um quadro total do Universo. Nas escolas hindus eles são estudados a começar pelo Nyaya-Vaisesika, em seguida o Sankhya-yoga, terminando pelo Mimansa e pelo Vedanta. Passa-se assim gradualmente do conhecimento mais imediato à ciência do Absoluto.
Lemaitre, S. O Hinduísmo (1958)