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As invasões Indo-Européias e a Civilização Védica

Dois esqueletos jaziam nos degraus de tijolos que ligam a ruela aos poços situados no nível inferior. Um deles era de um homem, outro provavelmente de uma mulher. A morte surpreendeu essas duas pessoas quando elas subiam a escada para sair à rua, e uma delas caiu de costas. Um pouco mais adiante, na ruela, havia dois crânios. Próximo dali, encontraram-se nove outros, dos quais cinco de crianças, amontoados como se tivessem sido jogados apressadamente em um fosso. Um cômodo de uma ampla casa situada na parte oposta da cidade abrigava um macabro depósito: esqueletos de treze adultos de ambos os sexos e uma criança - entre os quais figurava um crânio fendido, talvez por um golpe de espada, e outro danificado por uma arma semelhante.
Ao todo, trinta e sete cadáveres haviam sido abandonados por volta do ano 1800 a.C., nas ruas ou nas casas de Mohenjo-Daro. Tal descoberta, por ocasião das escavações realizadas por John Marshall e E. J. H. Mackay entre 1922 e 1931, constituiu para os especialistas como um enigma policial dos mais difíceis de resolver, já que não se tratava simplesmente de identificar os assassinos, mas também de esclarecer o mistério que cobria como um véu a verdadeira história do fim de uma civilização e do milênio que a ela se seguiu. Desde o suposto momento do massacre das vítimas, Mohenjo-Daro, essa grande cidade do próspero vale do Indo, parece ter permanecido desabitada durante dois mil anos.
E, mais ainda, toda a civilização harappiana parecia ter-se eclipsado durante mil anos, até que por volta de 600 a.C. o vale do Ganges, no longínquo oeste, viesse servir de berço a uma nova e poderosa cultura, dotada de outra língua e de outra religião, com uma literatura prodigiosa, uma agricultura de alta produtividade e técnicas metalúrgicas bastante sofisticadas. O destino dos harappianos da idade do bronze e os acontecimentos do milênio seguinte colocavam estas duas questões árduas para os arqueólogos.
Em meados dos anos 40, Mortimer Wheeler, que nessa ocasião era o diretor-geral da Sociedade Arqueológica Indiana, resolveu parte da equação - o mistério dos esqueletos - de forma aparentemente satisfatória. Segundo ele, os assassinos teriam vindo do oeste e pertenciam a populações nômades cujo afã era apropriar-se de Mohenjo-Daro e da maior parte do vale do Indo.
Mas a tese de Wheeler não se sustentou por muito tempo. Nos anos seguintes, indícios perturbadores iriam se acumulando e pondo por terra os fundamentos da solução de Wheeler, até destruí-Ia por completo, e substitui-la por uma teoria bem mais complexa e fascinante.
Mortimer Wheeler verificou que no início do segundo milênio a portentosa cidade harappiana de Mohenjo-Daro "estava em vias de transformar-se em verdadeira favela". Os arqueólogos que, nos primeiros anos do século xx, haviam escavado as camadas mais antigas do sítio, tinham encontrado ali traços abundantes do que Wheeler chamava uma "degenerescência progressiva". A espessura dos depósitos de limo e dos escombros dos edifícios desabados demonstravam claramente que a antiga cidade de setecentos anos tinha sofrido "inundações anormais e devastadoras". As casas construídas sobre as ruínas de habitações precedentes "eram cada vez mais mal construídas e tomavam feições de verdadeiras taperas".
Quanto às razões do declínio dessa civilização, que ele classificava de "colossal, evoluída e de grande longevidade", Wheeler preferiu não dizer nada. Porém os esqueletos espalhados pelo solo de Mohenjo-Daro não lhe deixavam nenhuma dúvida quanto às circunstâncias de seu desaparecimento. Suas conclusões, talvez influenciadas pelos estudos que fizera sobre o avanço das legiões romanas na Europa e até na Inglaterra, eram formais: "Vemos ali os vestígios de um massacre, após o qual Mohenjo- Daro deixou de existir."
As escavações que Wheeler efetuou no ano de 1946 em Harappa, cidade que deu nome à civilização do vale do Indo, lhe permitiram fazer descobertas que pareciam ratificar sua tese. O conjunto, rodeado de imensos muros de tijolos de terracota, parecia o de uma cidadela de primeira linha, circundada de fortificações que não teriam tido razão de existir se a cidade não tivesse sido ameaçada de invasão.
Quanto à identificação dos presumidos agressores de Harappa, ela não apresenta grandes dificuldades, uma vez que estes haviam deixado escrito seus massacres. Com efeito, os indo-europeus a que se deu o nome de arianos - povo de seminômades belicosos originários da Ásia central e que chegaram ao vale do Indo por volta de 1800 a.C., após haverem atravessado o Irã - compuseram hinos a seus deuses, hinos em que Wheeler reconhece o valor de uma confissão escrita. "Destro no desempenho de todos os atos próprios do homem, o deus terrível dominou os adversários com suas armas", proclamava um dos hinos. "lndra (rei dos deuses da Índia, o qual comanda a chuva e a guerra), inebriado de alegria abateu seus castelos: em sua pujança ele os massacrou, ele, que brandia o trovão."
Esse é o tom dos numerosos versos do Rigveda, o mais antigo dos quatro manuscritos sânscritos (Vedas), ou livros do conhecimento, textos fundadores do hinduísmo. Eles narram os ataques que os invasores da língua sânscrita lançaram, montados em seus carros de com- bate, contra as cidades fortificadas que se supõe serem as do vale do Indo. "Pela crença em ti, as raças de cor morena fugiram e se dispersaram por terra estrangeira, longe de suas propriedades", exaltava um hino dedicado à Agni, divindade indo-ariana do fogo sacrifical que governa o horizonte do sudoeste, "quando tu, Agni, abrasaste e fendeste seus castelos."
A leitura do Rigveda levou Wheeler, influenciado pelos esqueletos encontrados em Mohenjo-Daro e pelas obras defensivas de Harappa, a uma conclusão audaciosa. "No momento da decadência, iniciada por volta do século xvii a.C., o povo harappiano sucumbiu aos golpes dos invasores arianos", escreveu ele, formulando desse modo uma explicação clara do advento de um milênio - a era védica, que situamos aproximadamente entre 1800 e 600 a.C. - que permanecia envolto em tanto mistério e legava tão poucos vestígios à posteridade (com exceção dos Vedas) que os historiadores o tinham qualificado de "a obscura idade védica".
A teoria de Wheeler sobre a queda da civilização harappiana predominava, com todos os subentendidos nela envolvidos: a antiga civilização do Indo representava um impasse histórico, a idade obscura dos Vedas abrangia milhares de anos, e fora preciso aguardar o advento da era clássica, por volta de 600 a. C., para que a cultura, na forma indo-ariana, reaparecesse na Índia. Ao se interrogar a respeito da contribuição que a cultura harappiana proporcionou "aos resultados duráveis da realização humana", Wheeler achou-a muito superficial. Para ele, essa cultura "falhou" em transmitir os valores simbolizados nas vastas ruínas por ela deixadas. O vale do Indo, escreveu Wheeler, "não proporcionou muita coisa à nova Índia, além do seu nome", enquanto o vale do Ganges, que presumivelmente o sucedeu como país dos indo-arianos, autores dos Vedas e fundadores do hinduísmo, "merecem que se lhes reconheça o mérito de haver proporcionado uma fé à Índia".
Seja como for, a tese de Wheeler, forjada a partir dos esqueletos de Mohenjo-Daro e das muralhas de tijolos de Harappa, mostrou-se equivocada. Ela subestimou demasiadamente a vitalidade do povo harappiano e exagerou a participação dos indo-arianos, os quais não constituíam uma raça à parte, mas um grupo de tribos que compartilhavam uma língua e uma cultura. Seu próprio nome, derivado de uma palavra sânscrita que pode traduzir-se pela expressão "de caráter nobre", aplica-se a qualquer pessoa que cultua as divindades védicas.
Os raros vestígios arqueológicos e as escrituras védicas, nos quais Wheeler apoiara suas afirmações, apresentavam incoerências descomunais. Havia, por exemplo, indícios de inundações realçados por seus predecessores, os quais tinham, segundo ele, "registrado suas observações com uma inexatidão desconcertante". Havia também a frustrante imprecisão do Rigveda, composto vários séculos após as populações harappianas terem abandonado suas cidades. As coloridas descrições das pessoas, dos lugares e das batalhas feitas pelo texto não proporcionavam nenhuma informação capaz de identificá-los com precisão ou situá-los no espaço ou no tempo. Além do que, e essa talvez seja a maior dificuldade encontrada por Wheeler, os vestígios nas cidades harappianas destruídas pelos invasores não apresentavam nenhum indício que sugerisse a existência de um equipamento militar, quer se tratasse de armas de defesa, quer de armas de ataque; e não se encontrou ali nenhum vestígio indo-ariano.
A partir de meados dos anos 60, a hipótese de Wheeler foi seriamente questionada. Após um exame minucioso dos esqueletos que constituÍam um dos fundamentos da teoria do arqueólogo britânico, George E Dales Jr., que mais tarde dirigiu a missão arqueológica americana sobre a cultura de Harappa, rejeitou de modo cabal a idéia de que esses despojos pudessem provar a ocorrência, naquele local, de um massacre. "Não encontramos", escreveu ele em 1964, "um único corpo no local da cidade fortificada, último baluarte onde se pode razoavelmente supor que teriam se concentrado os defensores dessa próspera capital."
Além disso, após verificar a falta de cuidado com que haviam sido recolhidas as informações relativas aos esqueletos, Dales declarou: "Por falta de provas concludentes, não podemos sequer afirmar que pertencem todos ao mesmo período." Até o papel das muralhas da cidade, que Wheeler havia escavado pessoalmente e interpretado como construções defensivas, foram postas em questão. Outros analistas atribuíram-lhe uma função defensiva, mas não contra ataques militares, e sim como dique contra as enchentes.
Um questionamento ainda mais radical surgiu em 1984, depois que K. A. R. Kennedy, especialista em antropologia física da Universidade de Cornell, realizou um primeiro exame dos dados biológicos, ou seja, os sinais deixados nos esqueletos pelos traumatismos causadores da morte das vítimas do suposto massacre. Wheeler e outros especialistas depois dele haviam atribuído grande valor a essas marcas encontradas nos crânios de vários esqueletos, nas quais repousava a teoria do massacre. Kennedy concluiu que um dos crânios havia sido danificado muito tempo depois da morte da pessoa. Outro crânio apresentava efetivamente uma marca, mas o osso trazia sinais de algo feito cuidadosamente, como uma intervenção cirúrgica, ocorrida mais de trinta dias antes da morte. "Há apenas um exemplo de esqueleto que apresenta sinais irrefutáveis de morte por traumatismo", escreveu Kennedy "mas isto não é suficiente para assegurar a ocorrência de um massacre." Ao contrário, concluiu ele, é possível que essas pessoas tenham tido morte natural, e que seus corpos tenham sido displicentemente enterrados em lugares de Mohenjo-Daro abandonados pelos habitantes no declínio da civilização harappiana. Novas descobertas vieram juntar-se às re-interpretações dos vestígios arqueológicos existentes, para tornar ainda mais insustentável a idéia de que a cultura harappiana teria desaparecido subitamente, após a decadência de suas opulentas cidades. A esse respeito, a descoberta, em 1956, de Pirak, cidade situada no Beluchistão, duzentos e quarenta quilômetros ao norte de Mohenjo-Daro, exerceu papel preponderante na orientação das pesquisas arqueológicas. O povoado, que ocupava uma área de nove hectares, fora habitado desde os primeiros tempos da civilização do Indo e continuara florescente ao longo de todo o milênio referente à idade obscura dos Vedas.
No exato momento em que a arqueologia tradicional desmontava as velhas teorias, a ajuda de novas tecnologias permitiu tentativas de explicação de alguns mistérios que haviam confundido Wheeler, tais como as inundações e o declínio espetacular das cidades harappianas antes de surgirem os indo-arianos. Já no século xix, os arqueólogos haviam registrado a presença de gigantescos leitos fluviais secos no vale do Indo, e se haviam interrogado sobre que fenômenos teriam modificado tanto os antigos cursos d'água. Durante a década de 1970, imagens do sub-continente feitas por satélite forneceram a prova da ocorrência de colossais transformações topográficas, talvez suscitadas por um terremoto provocado pelos movimentos tectônicos que, por volta do segundo milênio, teria modificado o curso do Indo e reduzido o leito de um rio que. fora ainda mais largo, a acreditar no relato dos Vedas: o Saraswati, que. nascia no Himalaia e desaguava no mar de Omã, após percorrer um curso paralelo a leste do Indo.
A partir de 1980, o peso das provas acumuladas havia eliminado a hipótese de Wheeler, segundo a qual a civilização harappiana sucumbira a uma invasão indo-ariana. Não fora a civilização que se extinguira, mas as cidades, e as armas não haviam tido ali nenhum papel. A medida que o Saraswati secava e se modificava o curso do Indo, é provável que as inundações tenham destruído numerosas colônias, enquanto outras, instaladas nas margens escarpadas dos rios, encontravam-se longe da água e das mudanças por elas provocadas. Mohenjo-Daro e Harappa foram construídas parcialmente sobre enormes plataformas de tijolo destinadas a protegêIas das enchentes, foram poupadas de danos maiores.
Ambas, porém, foram vítimas de outra enchente, a maré humana dos refugiados que vinham das povoações menos afortunadas. Talvez seja mais à superpopulação que ao abandono que devamos imputar a decadência e a insalubridade dessas cidades. E podemos supor que a agricultura, duramente atingida pelo esgotamento do solo e pelos danos causados pelas enchentes, mal tenha podido satisfazer as necessidades dessas populações em plena expansão.
Mas os dados que invalidam a tese de Wheeler e engendram uma nova interpretação do declínio da civilização harappiana não apresentavam nada de novo sobre a história do milênio iniciado em 1800 antes de nossa era. Podemos afirmar que o mistério havia se tornado mais denso: se as populações harappianas não foram dizimadas pelos invasores, por que teriam elas desaparecido sem deixar rastros, legando não mais que um nome à posteridade? De que maneira os indo-arianos, simples pastores nômades e belicosos, puderam dar à luz uma grande religião, uma literatura magnífica, e construir as soberbas cidades que iriam fazer a glória da Índia clássica a partir do século VI a.C., e por que estas realizações de- moraram tanto a surgir?
Os métodos tradicionais da arqueologia não estavam à altura de fornecer a mínima resposta a essas perguntas. As cerâmicas e outros objetos deixados pelas culturas pós-harappianas não ofereciam informações suficientes para lançar luz sobre a idade obscura. Além do mais, os arqueólogos não encontraram nenhum vestígio dos primeiros indo-arianos, esses pastores que não deixavam marca durável no território que percorriam. Foi da singular colaboração entre cientistas e poetas há tanto tempo desaparecidos, associando um meticuloso trabalho de escavação e medição a meditações sobre as sutilezas dos cânticos, a certos detalhes dos rituais e ao testemunho de uma língua morta que nasceram os primeiros elementos de uma hipótese de todo nova. E esta nova maneira de sondar os mistérios do passado possuía raízes tão profundas quanto a própria história da Índia.
Em 1783, chegava a Calcutá William Jones, nomeado juiz da Suprema Corte da Grã-Bretanha na província de Bengala. Ao contrário de muitos funcionários da época, Jones tinha pela Índia, este "maravilhoso país", pela cultura e pela população exótica uma sede de conhecimentos. Não demorou a organizar uma equipe com dois compatriotas que compartilhavam as mesmas idéias e fundar a Sociedade Asiática de Bengala, dedicada ao estudo da história da região.
Um dos associados, Charles Wilkins, aprendera a ler e a escrever o sânscrito, do qual apenas alguns raros e preciosos manuscritos conservavam o traço escrito e que era falado apenas pela casta sacerdotal dos brâmanes, os quais preservavam seus segredos a sete chaves. O sânscrito era a língua sagrada dos hindus, aquela que seus ancestrais indo-arianos haviam utilizado para conservar por escrito os textos sagrados mais antigos, os quatro Vedas, a começar pelo primeiro, o Rigveda, de onde Wheeler tirara a idéia dos invasores montados a cavalo. Em 1784, a Sociedade publicou a tradução, feita por Wilkins, do "Bhagavad-Gita", um dos textos fundamentais da fIlosofia hindu, que trata dos deveres e das boas ações e faz parte do Mababharata, poema épico composto por volta de 800 a.C. Primeira obra da literatura sânscrita a ser publicada em inglês, o "Bhagavad-Gita" tornou-se um clássico, muitas vezes comparado à Ilíada, relato da guerra de Tróia escrito por Homero, e a gozar de imensa popularidade pelo mundo afora.
Ao mesmo tempo, Jones lançou-se a uma empreitada particular- mente difícil: aprender não apenas a escrita mas a própria língua. Assim fazendo, ele logo pôde estabelecer ligações entre certas palavras em sânscrito e seus equivalentes gregos e latinos. Em fevereiro de 1786, ele apresentou à Sociedade Asiática a surpreendente conclusão a que chegara: o sânscrito, o grego e o latim apresentavam tantas semelhanças nos verbos e nas for- mas gramaticais que "nenhum fIlólogo podia examiná-las sem acreditar que haviam surgido de uma fonte comum, talvez desaparecida há muito tempo". Alargando ainda mais sua hipótese, declarou que muitas outras línguas, aí compreendidas as pertencentes aos grupos germânico e céltico, deviam provir dessa fonte comum. Além de descobrir o que se passou a chamar de família indo-européia, Jones abriu, praticamente sozinho, um novo campo do conhecimento, o da fIlologia comparada.
Durante os oito anos seguintes, o sábio inglês mergulhou apaixonadamente na leitura, tradução e estudo dos antigos textos escritos pelos indo-arianos. Em 1794, quando estava com a idade de quarenta e oito anos, a morte veio interromper suas pesquisas, mas graças a ele a literatura sânscrita voltou a gozar de formidável interesse, não apenas na Índia mas também na Europa. E a língua em que foi escrita essa literatura veio oferecer a gerações de estudiosos um verdadeiro tesouro de informações sobre as origens e a história do povo indo-ariano que a compôs.
“As palavras duram tanto quanto os ossos", constatava em 1859 Adolphe Pictet, sábio suíço que, após haver estudado línguas, fIlosofia e história natural na França, Alemanha e Inglaterra, decidiu pesquisar no' sânscrito as chaves capazes de decifrar os mistérios da civilização indo- ariana. "Da mesma forma que um dente contém implicitamente certas partes da história de um animal, uma simples palavra pode levar a toda a série de idéias associadas à sua formação. Eis por que o termo paleontologia lingüística é o melhor que poderíamos achar para a ciência que temos em mente."
A partir de então, enquanto os arqueólogos se debruçavam sobre cacos de louça, os filólogos tratavam de fazer as palavras falar. Assim, por exemplo, as semelhanças que existem entre as palavras empregadas em sânscrito, em alemão, em lituano, em eslavo antigo e em inglês para designar a bétula levou-os à conclusão de que a língua da qual derivam todas essas ramificações deveria possuir um termo cujo significado e pronúncia estivessem próximos da palavra "bétula". Para que tal hipótese fizesse sentido, era necessário que a pátria. original dos indo-arianos se situasse em um espaço onde florescesse essa árvore de folhas diminutas das regiões frias e temperadas. Estabelecendo Uma lista de termos comuns desse gênero - as palavras empregadas para designar, por exemplo, o cavalo, a vaca, a ovelha e a cabra -, a lingüística poderiam ensejar informações sobre a cultura e o meio ambiente das populações pré-arianas. Pouco a pouco, foi-se impondo entre os pesquisadores a idéia de que os predecessores dos indo-arianos haviam vivido nas estepes eurasianas, em alguma parte entre o sul da Rússia atual e o oeste da Turquia. Foi lá que esses povos, que falavam uma língua que se convencionou chamar de proto-indo-européia, domesticaram o cavalo, aprenderam a fabricar armas e utensílios diversos de cobre e bronze e iniciaram uma migração permanente para o leste e para o sul, até o subcontinente indiano.
Os traços da chegada desses migrantes à Índia encontram-se tanto em sua herança lingüística quanto nos objetos que deixaram. Os pesquisadores detectaram nos dialetos indo-arianos modernos traços de uma antiga língua indo-européia, talvez anterior ao sânscrito, que diferenciaram das palavras remanescentes encontradas nas línguas faladas nas montanhas do norte. Essas observações levaram à suposição de que a migração dos indo-arianos para a Índia ocorrera por vagas sucessivas, uma das quais precedera o declínio brutal das grandes cidades da civilização do Indo, ou fora concomitante a ela, e as outras se tinham sucedido continuamente durante os seiscentos anos seguintes.
Os estudiosos dedicaram-se à literatura sânscrita a partir do mo- mento em que Charles Wilkins e William Jones a revelaram aos olhos do mundo ocidental. Os textos fundamentais desse corpus - os quatro Vedas e dois poemas épicos - tinham de excepcional o fato de oferecerem informações sobre uma época antiga, da qual nenhum outro texto escrito sobrevivera. Mesmo assim, seu valor documental é discutível, porque nada permite distinguir entre o que é mito e o que é história.
O primeiro dos quatro Vedas, o Rigveda, contém 11 mil e dezessete hinos, ruja composição original remonta provavelmente à primeira metade do segundo milênio. Esses poemas, que expressam o temor diante dos mistérios da vida e do universo, foram compilados pelos brâmanes, que lhes deram uma forma padronizada, pela qual os transmitiram oralmente através das gerações. Eles só foram postos em forma escrita muito mais tarde; o documento escrito mais antigo que se conhece remonta ao século xiv de nossa era, ou seja, muito tempo depois do início da era histórica.
Ao Rigveda juntam-se duas outras obras, o Yajurveda e o Samaveda, em que se encontram instruções e fórmulas detalhadas para os sacrifícios e a declamação dos hinos. O quarto, o Atharvaveda, um pouco mais tardio, comporta fórmulas mágicas destinadas a controlar as coortes de novos demônios e as moléstias desconhecidas encontradas pelos indo-arianos à medida que adentravam o subcontinente indiano. Após os Vedas surgiram as duas grandes epopéias, o Ramayana e o Mahabharata. Com o tempo, os Vedas acabaram por ser considerados revelações divinas da verdade metafísica, e as epopéias, instruções sobre a arte de guiar a própria conduta.
Para os arqueólogos, que buscam antes de mais nada verdades objetivas e marcas específicas de datas e lugares, a poesia védica e as meditações religiosas não constituem de forma alguma uma fonte de informação confiável. Seja qual for seu valor literário, esses textos não têm para eles nenhuma utilidade, já que não atribuem nenhuma data ou lugar aos acontecimentos que descrevem.
É a William Jones, que já havia revelado ao mundo a literatura védica, que se deve reconhecer o mérito de ter estabelecido, pela primeira vez, um liame entre a poesia e a história. O fator decisivo dessa revelação foi a descoberta de outro nome do Son, rio que deságua no Ganges, a leste de Patna. O culto pesquisador já possuía várias informações essenciais: sabia que o lugar em que confluíam o Ganges e o Son se localizara antigamente em Patna, antes de deslocar-se para leste movido por formidáveis catástrofes naturais, e que, nos tempos antigos, essa cidade se chamava Pataliputra. Um dia, ele encontrou em um trecho da literatura sânscrita uma referência ao Son como "rio do braço de ouro", ou Hiranyabahu, e o sentido dessa descoberta evidenciou-se para ele com uma clareza que teria certamente escapado a quem não dispusesse dessas informações.
Jones, que tornara a mergulhar nos textos clássicos gregos, na esperança de ali encontrar alguma ligação com os acontecimentos descri- tos pelos textos sânscritos, avaliou que a invasão do Pendjab por Alexandre Magno, em 326 a.C., lhe oferecia melhores oportunidades com relação a isto, já que os autores gregos tratavam esse episódio histórico com riqueza de detalhes. Mas infelizmente a invasão não era sequer comentada pelos trechos sânscritos. Mesmo assim, o sábio inglês descobriu que o historiador e diplomata grego Megástenes, que fora enviado em missão ao rei indiano Sandracottus por Seleuco I Nicator, um dos sucessores de Alexandre, escrevera numerosas páginas sobre a corte desse soberano da Índia e sobre sua capital, Palibothra, situada na confluência dos rios Ganges e Erranaboas. Se o segundo rio correspondia ao Son, seria possível sus- tentar a tese de que o Palibothra não era outro senão o antigo Pataliputra. Até a descoberta de Jones, de que o rio era igualmente chamado de Hiranyabahu, não havia como estabelecer nenhuma semelhança entre os nomes Erranaboas e Son.
A continuação das pesquisas veio revelar que na época de Megástenes reinava em Pataliputra (ou Palibothra) um rei conhecido na literatura védica pelo nome de Chandragupta, que correspondia a Sandraguptos, uma variante do Sandracottus de Megástenes. De acordo com o que se sabe sobre o reino de Seleuco I Nicator, foi entre 325 e 313 a.C. que Chandragupta Mauria subiu ao trono. A partir daí, a lista de reis fornecida pela literatura védica permitia estabelecer um ponto de partida cronológico para o período seguinte. Mas não se dispunham de elementos suficientes para recuar tanto no passado.
Apesar da imprecisão das informações no que tange a datas e lugares, o leitor atento podia extrair dos Vedas bom número de informações sobre seus autores indo-arianos e o território onde viviam. Em um dos hinos mais recentes, os versos do Rigveda fazem freqüentes alusões aos cinco rios que dão seu nome ao Pendjab (pendi quer dizer "cinco", e ab "rio"), mas o Ganges não é citado sequer uma vez. Mesmo assim, nos Vedas seguintes o território dos indo-arianos desloca-se progressivamente para leste, para além do caudaloso rio chamado Saraswati, até as planícies de Kurukshetra, no Doab, ou país dos Dois Rios, entre o Ganges e o Yamuna.
Os autores do Rigveda falam de si mesmos como pastores semi-nômades, de índole belicosa, que extraem alguns recursos da agricultura para complementar sua riqueza em cavalos e bovinos. As divindades de seu panteão são muito poderosas - Indra, deus da guerra e da conquista, que despeja raios do seu carro de fogo e gosta de embriagar-se com o licor sagrado; ou Agni, deus do fogo, encarregado de queimar as oferendas em holocausto e de servir de intercessor entre os homens e as inumeráveis divindades associadas aos diferentes aspectos da natureza.
Por meio do culto prestado a cada um desses deuses - cujos rituais são descritos pelos Vedas - o crente busca unir sua alma à divindade, fonte do curso harmonioso do nascimento, do crescimento, da velhice e da renovação, que são a herança do homem, dos deuses e do universo. Esse espírito é chamado pelo Rigveda de Rita, enquanto os outros Vedas o denominam Brama. Somente a realização desse poder universal pode liberar a alma do ciclo do nascimento, da morte e da reencarnação.
Tal como descrita nos primeiros Vedas, a sociedade indo-ariana dividia-se em três classes - os brâmanes, os kshatriya e os vaishya -, que compreendem todos os "nascidos duas vezes", isto é, todos aqueles que receberam os sacramentos que permitem participar dos rituais védicos. A primeira das castas era a classe dos especialistas nos rituais, dos sacerdotes e dos poetas; a segunda era a dos guerreiros, que também podiam ser chefes de tribos; e a terceira, situada na parte inferior da hierarquia, era a dos mercadores e dos artesãos.
Com o passar do tempo, a cultura védica foi-se tornando cada vez mais complexa. Os textos e as epopéias mais tardias contêm descrições do uso dos instrumentos de ferro (ausentes no Rigveda) e do arado, bem como da cultura de diversos cereais, do trigo ao arroz. A medida que aumentavam em número, os indo-arianos foram colonizando extensões de terra cada vez mais vastas e contraindo matrimônio com as populações locais, dando ensejo ao surgimento de rixas e rivalidades entre clãs e alianças de clãs, entre invasores e nativos. Esses antagonismos exigiram uma concentração de recursos e de poder, que levaram à necessidade de uma organização mais sofisticada e conseqüentemente de uma maior estratificação social.
Os dois estamentos superiores da sociedade indo-ariana logo perceberam que suas especialidades podiam ser complementares, e que podiam colaborar um com o outro, conservando os sacerdotes sua suprema- cia sobre os assuntos religiosos e culturais, e estendendo os guerreiros sua autoridade ao campo político e econômico. A sociedade indo-ariana dividiu-se, a partir de então, em duas esferas, uma espiritual e outra secular, cada uma delas ainda mais complexa. Os rituais e sacrifícios passaram a ganhar cada vez mais importância e foram codificados na literatura védica, o que permitiu drenar mais e mais poder e riqueza para as mãos dos sacerdotes e guerreiros.
Foi assim que nasceu a noção do dharma, "o que sustém", ou "a ação justa", corpo de doutrinas filosóficas, religiosas e sociais que se tornaria o fundamento do hinduísmo e passaria a ocupar um lugar preponderante no pensamento e no comportamento dos indianos durante toda a época clássica e até a era moderna. O dharma guia o atman, ou alma individual, para que esta realize sua identidade essencial com Brama, a fonte de todas as existências. Na seqüência das tribulações, que são a herança da vida e do ciclo das reencarnações, cada um pode tanto aproximar-se da moksha, última serenidade e libertação da transmigração, como afastar-se dela. Aproxima-se aquele que cumpre todos os dias os rituais que geram méritos religiosos, se dedica à prática da meditação ioga, segue os ensinamentos de um guru, ou mestre espiritual, e com seu comportamento dá mostras de sua pureza e desapego. Já o que se afasta dessa via, seja na vida atual, seja na precedente, fica impedido de atingir o moksha devido ao seu carma (lei das causas e efeitos que transcende o limite da existência).
Os Vedas mais recentes fazem referência a uma excrescência das três classes acima definidas, justificada pelo fato de que a sociedade conta em seu meio com indivíduos que não merecem nem o status nem os privilégios dos nascidos duas vezes. Com o tempo, essa categoria de seres humanos inferiores, os shudra, encontra-se não apenas excluída dos rituais de purificação do carma mas também é considerada propriedade das classes superiores, tal como o gado ou os utensílios. Baseada originalmente na capacidade de cada um, essas divisões da sociedade indo-ariana foram pouco a pouco se transformando em um sistema de castas rígido e hereditário, favorável às classes superiores e às corporações de artesãos, cuja prosperidade - material e espiritual - provinha do trabalho dos "intocáveis", casta de servos privados de direitos que sobreviveu até nossos dias com o mesmo nome.
Os brâmanes asseguraram seus privilégios retendo a exclusividade na celebração dos rituais - somente eles memorizavam e transmitiam os Vedas -, defendendo o recurso às cerimônias em todas as circunstâncias possíveis e imagináveis e cobrando honorários elevados para cuidar que elas se realizassem segundo as regras. Ao mesmo tempo que eles exerciam essa autoridade ritual até sobre os poderosos chefes de tribo, sugavam a riqueza da classe dos mercadores e fiscalizavam para que os shudra permanecessem na base da pirâmide social, interditando seu acesso aos méritos decorrentes da observação dos rituais.
Essa divisão da sociedade e do poder estabelecida pelos indo-arianos ajuda a explicar um dos mistérios da pretensa idade dos Vedas: a ausência de grandes cidades. Enquanto a classe dirigente colabora com o clero e o exercício do seu poder passa pelos rituais, não se faz sentir a necessidade de uma administração complexa. Enquanto a acumulação de riqueza é severamente controlada, não há lugar para os centros comerciais. Essas observações levam a pensar que na sociedade descrita pelo Rigveda a vida devia concentrar-se nas aldeias e nos centros religiosos; e é exatamente isso que confirmam os vestígios arqueológicos dos primeiros tempos da era védica.
Embora os Vedas tenham permitido aos pesquisadores construir uma imagem sumária mas razoavelmente clara da evolução dessas tendências no seio da sociedade indo-ariana, permanece ainda uma pergunta: Qual era a identidade das populações autóctones que os invasores eurasianos encontraram ao chegar, e que tipo de relações foram instauradas entre os dois grupos? Os Vedas nada dizem a esse respeito, englobando todos os não-arianos em termos genéricos como Pani e dasyu, aos quais se juntam às vezes qualificativos pejorativos, tais como "de pele escura" ou "de nariz chato".
Entretanto, uma análise mais minuciosa e mais aprofundada dos Vedas levou os lingüistas à conclusão de que os indo-arianos nem sempre tinham encarado as populações autóctones com tal desprezo. O sânscrito dos Vedas, por exemplo, guarda traços fonéticos e semânticos da língua dravída, que muitos estudiosos acreditam ser derivada da língua harappiana. Tais empréstimos sem dúvida não teriam sido possíveis sem um contato estreito e prolongado, e talvez até mesmo sem casamentos entre os dois grupos, ou sem a abertura da religião védica às populações nativas. O exame atento do nome de um herói védico indica, por exemplo, uma ascendência dasiu, e os patronímicos de diversos brâmanes citados nos Vedas mais recentes não deixam dúvida quanto à sua origem não-ariana.
Tão logo os arqueólogos decidiram aplicar esses trabalhos à realidade para enriquecer o quadro da vida cotidiana na época védica fornecido pela literatura, e estabelecer a identidade das populações com as quais os indo-arianos tinham entrado em conflito, os dados que recolheram pareceram-lhes à primeira vista desconcertantes. A maioria dos estudiosos permaneceu admitindo a hipótese de que, mesmo abandonando a idéia de uma grande conquista militar, as populações indígenas, fosse qual fosse sua identidade, tinham ao menos sofrido, da parte dos indo-arianos, uma magistral derrota no campo cultural. Certas descobertas arqueológicas - conjunto de objetos de cobre, vestígios de uma cerâmica distintiva e sinais do início da idade do ferro - pareciam confirmar esse ponto de vista. A tentação de atribuir todas essas inovações aos invasores nômades era tão sedutora que poucos resistiram a ela, embora, afinal de contas, não houvesse nenhuma prova para fundamentá-la.
Em 1951, o número de conjuntos de ferramentas de cobre desenterrados no Doab e no centro da Índia chegava a trinta e sete. Como tais ferramentas diferiam, pela forma e pela função, das da cultura harappiana, e como atribuía-se a elas uma data que parecia coincidir com a da chegada dos indo-arianos, alguns estudiosos concluíram que elas constituíam mais um sinal da invasão e da dominação do vale do Ganges pelos indo-arianos. Mas as pesquisas posteriores vieram desmentir de uma vez por todas essas suposições cômodas. Os modernos métodos de datação permitiram, com efeito, determinar que certos objetos desses conjuntos haviam sido enterrados desde 2650 a.C., e que a aparição dos indo-arianos remonta ao ano 1800 antes de nossa era.
As escavações efetuadas por B. B. Lal, membro da Sociedade Indiana de Arqueologia e aluno de Mortimer Wheeler, oferecem outro exemplo de como a vontade indomável de confirmar as hipóteses em vigor a propósito das origens e da história dos indo-arianos muitas vezes se surpreende com perspectivas inesperadas. No início da década de 1950, Lal procurou levantar o véu de mistério que caía sobre a idade obscura dos Vedas, e tentou resolver o que ele qualificava de "um dos problemas mais desconcertantes da arqueologia indiana". Em sua busca da verdade sobre os indo-arianos, ele tomou como guia o poema épico Mahabharata, onde se encontra o relato sobre a batalha entre cinco príncipes virtuosos e seus cem primos maus pelo domínio de um reino muito próspero.
Depois de identificar mais de trinta sítios associados ao relato, Lal lançou-se a uma estafante empreitada de exploração sistemática. O essencial de suas descobertas consistiu em cacos de louça de barro, um dos vestígios mais comuns deixados pelos povos antigos. As camadas inferiores dos sítios aonde o haviam levado os relatos da literatura védica revelaram entretanto peças de um gênero especial, "uma bela cerâmica cinza decorada com motivos desenhados em negro", para usar as próprias palavras do arqueólogo. Praticamente todos os sítios védicos do Pendjab e do Doab revelaram esse estilo de cerâmica, denominado Painted Grey Ware, o qual remonta à primeira metade do primeiro milênio antes de nossa era. B. B. Lal passou então a considerar uma possibilidade, a de que "essa cerâmica detém talvez a chave dos mistérios da idade obscura".
Assim como a presença de esqueletos havia sido interpretada por Wheeler como sinal de uma invasão militar, também Lal e seus colegas dos anos 50 supuseram que a mudança observada na cerâmica assinalava o aparecimento de um novo povo. A Painted Grey Ware não se parecia com a cerâmica harappiana; além de sua argila ser mais fina, o cozimento mais cuidadoso e a decoração mais elaborada, a elegância das formas levava a marca do seu criador. Por volta do século VI a.C. a Painted Grey Ware foi substituída pela Northern Black Polished Ware, cerâmica negra polida associada à época clássica da Índia.
O fato de que esse tipo de cerâmica facilmente identificável ocupava lugares precisamente defInidos veio reforçar a interpretação tradicional sobre a idade obscura: a cultura da Painted Grey Ware, dos indo-arianos, havia suplantado a cultura harappiana, antes de ser, por sua vez, substituída pela Northern Polished Black Ware.
Outras descobertas pareciam confirmar indiretamente esse cenário. Ao lado das cerâmicas cinzentas pintadas, encontraram-se por vezes esqueletos de cavalos e vestígios de trabalhos em ferro, metal que surgiu no subcontinente quase na mesma época. Foi assim que Lal e outros pesquisadores construíram a imagem dos indo-arianos como um povo de cavaleiros belicosos, que trabalhavam o ferro e produziam a cerâmica acinzentada, e de uma cultura que acabou por desalojar a civilização urbana do vale do Indo.
Houve entretanto outros arqueólogos que chamaram a atenção para o fato de que não se havia descoberto nenhuma cerâmica do tipo Painted Grey Ware fora dos sítios do noroeste da Índia. A idéia de que os indo-arianos tinham trazido a cerâmica consigo, sem que dela restasse o menor traço antes de sua chegada, tinha poucas chances de ser aceita. A conclusão que acabou por firmar-se foi a de que a Painted Grey Ware não era um produto importado pelos invasores recentes, mas fruto do trabalho das populações autóctones, que provavelmente haviam ocupado a região durante muito tempo.
Quando os especialistas decidiram estudar os vestígios arqueológicos sem se deixar influenciar pelas hipóteses antes prevalecentes a respeito dos indo-arianos, pareceu-lhes mais lógico pensar que os autóctones tenham procedido a mudanças na cerâmica que produziam do que deduzir dessa modificação a chegada de uma nova população. Desde o final da década de 1970, são cada vez mais numerosos os especialistas na arqueologia da Índia antiga a acreditar que a Painted Grey Ware - da mesma forma que os conjuntos de ferramentas de cobre - é produto da evolução de uma cultura de muitos séculos de existência e estabelecida por muito tempo na região.
Mas, uma vez admitida a existência dessa cultura nativa, faltava identificar as populações no seio das quais ela havia florescido. As pesquisas nesse sentido só começaram a partir da década de 1980, e o véu ainda não foi totalmente descerrado. Sabe-se, em todo o caso, que os harappianos expulsos de suas cidades pelas inundações e modificações de curso dos rios emigraram para o vale do Indo, o Pendjab e os limites ocidentais do vale do Ganges, onde se empenharam em fazer renascer sua agricultura em novas terras, iniciaram os trabalhos em cobre e em ferro e se adaptaram a culturas e técnicas que ate então lhes eram desconhecIdas.
Para dizer a verdade, parece cada vez mais indubitável que essas populações harappianas, apesar de terem sido obrigadas a abandonar suas cidades e a ver suas antigas terras devastadas, conheceram um vigoroso renascimento agrícola. De fato, nas proximidades dos povoados mais tardios da civilização urbana do Indo apareceu, no início dessa idade que chamamos de obscura, toda uma gama de novos produtos e técnicas agrícolas.
A introdução de culturas de verão - como a ao sorgo, do milho e do arroz - revela uma policultura sazonal bem mais complexa e mais produtiva que os métodos e culturas precedentes, e geradora de excedentes de cereais que permitiram a expansão da pecuária, do povoamento e do comércio. Nessa mesma época, as espessas florestas do sudeste do Doab e do centro do vale do Ganges abrigavam outros grupos nativos, constituídos principalmente de caçadores-coletores, que eventualmente praticavam também a agricultura e a pecuária. Durante o segundo milênio anterior à nossa era, essas populações receberam influência de seus vizinhos harappianos do oeste, e aprenderam a cultivar o arroz, o trigo e a lentilha, além de iniciarem a criação de bovinos, porcos e cabras. Com o aumento da produção de alimentos, elas começaram a se aglutinar e a formar povoados, nos quais, com o passar do tempo, se foi impondo a especialização de tarefas e a estratificação social. Essas tendências, que levam as marcas da cultura harappiana, já estavam profundamente enraizadas antes da chegada dos indo-arianos.
Graças a esses novos conhecimentos, a tese da descontinuidade, que andava a par com as antigas interpretações sobre a idade obscura, cedeu lugar à hipótese de uma interação contínua e prolongada entre diversas culturas estabelecidas. A medida que os indo-arianos franqueavam as gargantas e passagens das montanhas do noroeste e penetravam no interior do subcontinente indiano, entravam em contato com as populações harappianas do vale do Indo e do Pendjab. As relações entre esses dois grupos eram conflituosas, e os pastores nômades não cessavam de lançar às cidades dos agricultores ataques sucessivos, perpetuados nos relatos do Rigveda.
Mesmo assim, não se pode afirmar que os indo-arianos pura e simplesmente subjugaram as populações harappianas, porque a hostilidade não excluía a troca de idéias. Foi assim, por exemplo, que durante o segundo milênio a.C. as populações do Swat, vale de um afluente do Indo situado nas montanhas que se erguem na fronteira do Meganistão, incineraram seus mortos segundo a forma descrita pelos Vedas, sem entretanto abandonar de todo seus antigos métodos de sepultamento. Mais ou menos na mesma época apareceram em Pirak e no Swat estatuetas de cavalos, enquanto os artesãos começaram a pintar nas cerâmicas de Harappa novos motivos, talvez atribuíveis a uma influência indo-ariana. Ao que tudo indica, ocorreu então o que costuma acontecer quando um povo agressivo e versado na arte da guerra entra em contato com outro, econômica e tecnologicamente mais avançado: uma fusão progressiva que preserva o melhor das duas culturas. Em geral, o poderio militar serve para impor a ordem e remanejar de alto a baixo o aparelho social e político, mas não toca nas aquisições técnico-econômicas.
No decorrer do primeiro milênio antes de nossa era, esse processo ao que parece foi intensificado no vale do Ganges. Embora em termos numéricos a relação de forças tenha sido extremamente desfavorável para os recém-chegados indo-arianos, seus carros de guerra e seus modos belicosos deviam representar ameaça suficiente para convencer as populações nativas a buscar entendimento com eles. Por outro lado, não é impossível que a decadência da antiga ordem social e religiosa da civilização harappiana tenha deixado uma lacuna que veio a ser preenchida pelos rituais indo-arianos, para grande alívio das populações indianas.
Em vez de esmagar totalmente os nativos, os indo-europeus certamente preferiram integrar a elite dos chefes tribais e religiosos da civilização do Indo à sua própria hierarquia, ou seja, às classes superiores - sacerdotes, guerreiros, administradores e artesãos - da sociedade védica. Depois, sendo do interesse dos elementos dominantes da população autóctone o sucesso e a perenidade da sociedade integrada, eles trataram de relegar a maioria dos nativos à classe social mais baixa, a dos servos.
Essa foi, em todo o caso, a ocasião de uma notável síntese, na qual os indo-arianos desempenharam aparentemente papel mais de catalisadores do que de agentes principais. Talvez eles nem tenham inventado nem importado a Painted Grey Ware, mas certamente contribuíram para o surgimento do contexto que facilitou a difusão dessa cerâmica. Quanto ao cavalo, é indubitável que se deve aos indo-arianos sua introdução no subcontinente, embora a utilização para fins econômicos e militares só tenha se generalizado bem mais tarde.
Seja como for, os indo-arianos deixaram uma marca incontestável na vida religiosa, social e intelectual da Índia. Sua influência foi tão forte que bastaram alguns séculos de coexistência para que, das planícies do Pendjab às florestas do Doab, as populações nativas abandonassem seus próprios idiomas e adotassem o dos recém-chegados, idioma este precursor do sânscrito.
O maior mérito da fusão dos povos do centro-norte da Índia é ter realizado, no desenrolar da época védica - à qual o epíteto de obscura se tornou definitivamente inadequado -, uma síntese que, a partir do ano 600 a. C., lançou os fundamentos sobre os quais haveriam de expandir-se as maiores cidades-estados conhecidas da história do mundo. O antropólogo americano Jonathan Mark Kenoyer relacionou cinco condições indispensáveis para que esse gênero de cidades pudesse aparecer e perdurar, e constatou que o subcontinente indiano da época reunia todas elas. Entre esses elementos indispensáveis figuram a estratificação da sociedade, de par com a existência de uma rede de ligações entre especialidades econômicas e classes sociais, e a disponibilidade de certo número de recursos, aliada a uma evolução técnica suficiente para produzir excedentes.
Sem sombra de dúvida, a desintegração da agricultura provocada pelas gigantescas modificações do curso dos rios desempenhou papel primordial na queda das grandes cidades harappianas durante o segundo milênio, e a revolução agrícola representada pela adoção da policultura sawnai, pelas populações sobreviventes, encorajou a subseqüente expansão das cidades harappianas. A onipresença da Painted Grey Ware testemunha um progresso regular das técnicas e uma crescente aptidão para produzir e distribuir excedentes. Foi assim que as próprias populações nativas da Índia criaram uma parte dos termos da equação que resultaria em um renascimento do urbanismo.
Se é verdade que anteriormente se atribuiu um papel excessivamente importante aos indo-arianos na história da Índia antiga, é também indubitável que sua contribuição foi essencial. Foi a divisão da sociedade em classes e ocupações bem determinadas que forneceu à fase seguinte de urbanização seus órgãos e sua estrutura. Os privilégios da elite não teriam podido existir sem o trabalho dos menos afortunados. Os chefes espirituais tinham necessidade de templos, de vestes sacerdotais e de imagens religiosas; os reis, de palácios, de adereços e de exércitos; os guerreiros, de armas, de armaduras e de meios de subsistência; os artesãos, de locais de trabalho, de matérias-primas e de ferramentas. E nenhuma dessas classes era auto-suficiente.
Em uma sociedade tão estratificada, era indispensável transformar os excedentes agrícolas em alimentos e levá-los do produtor ao consumidor. À medida que outros recursos, tais como o ferro, as pedras preciosas e conchas marinhas, passaram a ter importância para os artesãos, que forneciam armas aos guerreiros, adereços aos ricos e poderosos e objetos sagrados aos sacerdotes, tomou -se também necessário extraí-los, processá-los e transportá-los. As rotas entre as fontes de matérias-primas e seu lugar de processamento e consumo entrecruzavam-se, e nos locais dessas intercessões de atividade humana o surgimento de cidades se tornou primeiro uma possibilidade e logo depois uma necessidade.
É o surgimento de um novo tipo de cerâmica, mais refinada - a Painted Grey Ware, depois a Northern Black Polished Ware - que melhor ilustra a amplitude dos progressos tecnológicos conquistados ao longo dessa época de profundas mutações. Mas os imperativos decorrentes da estratificação social - necessidade de ferramentas e de técnicas para lapidar pedras preciosas, colorir pérolas, trabalhar o vidro e as conchas e fabricar todos os emblemas indispensáveis à identificação da classe - também contribuíram muito para o desenvolvimento da cultura da idade védica. No fim do período, os conflitos pela supremacia entre reinos em vias de consolidação estimularam o progresso da tecnologia militar, seja de obras defensivas, seja de armas ofensivas. Os ataques e as escaramuças deram lugar a verdadeiras campanhas militares organizadas com o fim de obter os recursos de que o regime tinha necessidade. Foi então que uma parte cada vez maior da região centro-norte da Índia caiu sob o domínio de repúblicas ou de reis.
Os sacrifícios de cavalos, prática ritual que adquiriu importância cada vez maior durante o período final da idade védica, ilustram bem a forma como se desenrolou o processo. O ritual exigia que se deixasse um cavalo andar a esmo durante um ano inteiro acompanhado de um grupo de guerreiros. Ao final desse tempo, o rei sacrificava o animal e reivindicava a posse de todas as terras que ele havia percorrido. Ao encerrar-se a era védica, por volta do ano 600 a. C., o vale do Ganges abrigava dezesseis grandes estados com suas capitais, que rivalizavam entre si pelo comércio e pela guerra.
As maravilhosas cidades da Índia clássica já estavam em gestação, bem como as grandes religiões - entre outras, o budismo e o jainismo - que entrariam em conflito com os rituais e as tradições de brâmanes hindus. Um grande imperador preparou-se para entrar em cena para unificar todas as cidades-estados do Ganges. E graças à escrita, cuja utilização se generalizara para a redação das proclamações, dos códigos de leis e para o registro dos acontecimentos, nenhum detalhe dessa efervescência se perdeu. Ora, nada disso teria se passado sem o formidável entrecruzamento de culturas que foi obra - e a contribuição durável - da idade védica, uma época que na verdade não merece de forma alguma o epíteto de obscura.

in Allchin, B. Índia Antiga. Rio de Janeiro: Abril, 1998


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