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Kushans, Nômades e a Dinastia Gupta

Cerca de 80 a.C., o reino grego de Bactriana sossobra ante o avanço crescente de semi-nómadas vindos da Ásia central, estes por sua vez expulsos desta região pelo avanço dos Hunos da Mongólia interior. Entre os recém-vindos, tribus cíticas, iranizadas e helenizadas pelos seus suzeranos partos, e conhecidas dos indianos pelo nome de Saka, invadem o Oeste da Índia. Simultaneamente, os Andras, cujo poderio não cessa de crescer no Decão, exercem uma pressão sobre os reis de Sunga. Estes vêem-se obrigados a ceder lugar à nova dinastia dos Canvas. A Índia gangética volta a cair, dentro em pouco, na divisão política de que os Maurias a tinham tirado. Uma nova força, que vai desempenhar papel importante na Índia do Norte, está prestes a surgir nas regiões do Noroeste: a dos nómadas tocarianos vindos de Cotão (Ásia central) e apresentando afinidades com o Irão oriental. Designados pelo nome de Kuxana, erguem um vasto império que se estende do Oxo à planície do Ganges, reunindo assim sob a sua autoridade as antigas possessões dos indo-gregos e dos Sungas. O seu terceiro soberano, Kanisca[2] representa o apogeu desta dinastia; reina em Matura, no Norte da India, como em Kapixi (no Kabul). Se bem que os Kuxana estejam, quando da ascensão de Kanisca, instalados no Norte da India há um século, este monarca fez-se representar vestido com a túnica iraniana, na cabeça um barrete cita, e com pesadas botas de cavaleiro nómada. Porém, deu provas de magno ecletismo: tendo-se convertido ao budismo, foi o primeiro a fazer representar nas moedas a efígie de Buda, como também as das divindades iranianas; protege igualmente a religião jaina e o bramanismo; toma ao mesmo tempo o título imperial indiano de marajá «grande rei», o título parto «(rei dos reis» (rajatirajá) e o título chinês de «filho do céu» (devaputra). Colocado no cruzamento das rotas comerciais mais activas do tempo, reunindo sob uma soberania única regiões desenvolvidas havia séculos pelo helenismo e pela influência iraniana ao mesmo tempo que por tradições indianas, reinando sobre uma grande variedade de populações habituadas ao cosmopolitismo, Kanisca deve ter possuído uma forte personalidade cujas tradições indianas, tibetanas, chinesas e mongóis recordam.
Foi efectivamente uma época inteiramente dominada pelas trocas internacionais, quer de ordem comercial, quer intelectual. No domínio comercial, a actividade de Roma é um factor preponderante, e a da China não o é menos: as estradas da Seda, que atravessam o continente euroasiático de lado a lado, atraem o lento caminhar das caravanas, e fazem intensificar-se o tráfico dos objectos de luxo e de matérias-primas, nos seus percursos; por outro lado, a navegação de longo curso torna-se regular graças à utilização do regime das monções Emporia romanos são mesmo estabelecidos em diversos pontos das costas indianas, particularmente não longe do actual Pondichéri. A Índia beneficia destas várias condições: exporta ou importa, quer por mar quer pelas vias terrestres, e enriquece-se consideravelmente; a tal ponto, que uma lei de Vespasiano (69-79) interdita a exportação do ouro para a Índia, para acabar com o grave prejuízo que isso causava ao tesouro do império. Finalmente, a Índia estabeleceu por sua vez feitorias nos países dos mares do Sul, para onde estenderá um pouco mais tarde os limites extremos da sua expansão para o Sudeste asiático (Bornéu, e as Celebes).
Nesta atmosfera de opulência e de viagens incessantes, se desenvolveu a evolução religiosa e literária da Índia. Se a parte setentrional do país beneficia da unificação política que a dinastia dos Kuxana nela estabeleceu, o Sul não menos se desenvolveu e vê organizarem-se poderosos reinos, os de Pândia (região de Madura), dos Satacami (na região andra), dos Kerala (no Travancore), dos Cola, na costa do Coromandel, com Tanjore por capital e daí em diante a Índia toda que se inscreve nos louros intelectuais desta época brilhante.
Daqui resulta um desabrochar literário e artístico: o Ramaiana poderia ter sido completado por esta época, assim como a compilação do Mabarata; e o Bagava-Gita poderá ter sido redigido na mesma altura; além disso, Acvagosha - que a tradição budista pretende ministro de Kanisca - escreve as suas obras dramáticas ou edificantes, das quais se encontraram fragmentos antigos nas areias da Asia central. Enfim, o sânscrito, velha língua dos Vedas, tomou-se uma língua viva, e vulgariza-se a ponto de servir para os requisitos oficiais, literários, profanos e científicos, utilizada tanto pelos budistas como pelos adeptos do bramanismo.
O budismo prossegue na sua transformação, e expande-se cada vez para mais longe; monges indianos sucedem-se na China e no Turquestão, para realizar a obra empreendida desde o século I: a tradução dos cânones e dos textos principais do seu dogma e da exegese dele. A doutrina evoluíra bastante, e toma uma feição mais mística, oferecendo à adoração dos fiéis entes caridosos, os bodisatva, alguns dos quais têm papel messiânico. Produz-se um cisma entre a doutrina antiga e a nova, provocada, por certo, pelas influências helenísticas, semitas, iranianas, e mesmo cristãs, e depois maniqueístas que se desenvolvem no Noroeste.
A cisão, inteiramente pacífica, confirma-se no século II: o Teravada fica fiel às primeiras regras, o Maiana ou «Grande Veículo» toma a atitude de um dogmatismo negativista e apoia-se numa dialéctica fechada, de que Nagarjuna (cerca de 150-200), oriundo do Decão central, se torna o ardente prosélito. Ao mesmo tempo, um sincretismo se desenha entre o budismo e o bramanismo. Nestas duas religiões, as seitas multiplicam-se, e o misticismo aumenta: a teoria bramânica da «adoração confiante» (bacti) toma forma, enquanto - por reacção contra a confusão devida à efervescência filosófica do momento - se criam um a um os «sistemas» (darçana) ortodoxos do bramanismo.
Finalmente, uma eclosão artística atinge todas as regiões da Índia: no Noroeste, são os estilos greco-búdico e irano-búdico, herdeiros do helenismo; no Norte, a escola de Matura, algo iranizada pelos Kuxana e totalmente indiana, na linha de Barut e Sanchi; a Sudeste e no Marastra, os estilos andra, refinados e suntuosos. A arte budista está por toda a parte em pleno desenvolvimento, conservando o seu carácter narrativo, tão precioso para o estudo desta época. A arte brâmane, até então quase ausente da produção indiana, fez a sua aparição (sobretudo em Matura) assim como a arte jaina. A arte profana, ainda mal conhecida, faz-se representar pelos admiráveis espécimes de escultura em marfim encontrados no Afeganistão por Joseph e Ria Hackin, em 1937-1940, no local da antiga Kapici, capital de Verão dos Kuxana.
A esta brilhante época segue-se um desmembramento político, e o desenvolvimento intelectual parece sofrer um eclipse. Uma nova hegemonia, a dos Guptas, desenha-se cerca de 320 (?): como no tempo dos Maurias, o movimento tem origem em Magada, terra santa do budismo, na velha capital imperial de Pataliputra. Pouco se sabe do primeiro soberano da nova dinastia, Chandragupta, salvo que ele deve ter estendido bastante as suas conquistas, para tomar o título de imperador (marajadiraja). Este reinado era o prelúdio de uma linhagem valorosa que iria originar uma autêntica idade de ouro da civilização indiana.
Filho do precedente, Samudragupta (335-375?) aumenta o seu território e pratica com inteligência o método indiano e feudal que consiste em ligar a si como vassalos os vencidos, restabelecendo-os nos respectivos tronos. Deste modo anexa trinta e cinco estados, e o seu poderio estende-se na maior parte da Índia do Norte e do Centro, reconstituindo quase inteiramente o império de Açoka, cuja recordação continua viva; foi com plena consciência que os Guptas se esforçaram por imitá-lo: não é por um acaso, sem dúvida, que o primeiro imperador usa o mesmo nome do avô de Açoka, fundador da dinastia dos Maurias. E é com desígnio bem claro que Samudragupta utiliza uma das colunas erigidas por Açoka, perto de Alaabade, para nela mandar gravar o seu próprio panegírico e a enumeração das suas conquistas. De resto, apesar dos séculos decorridos, os testemunhos desse «grande século» continuam visíveis, sobretudo o palácio de Açoka, em Pataliputra, que só será destruído em 411. Se é sem dúvida natural para monarcas ambiciosos o vangloriarem-se deste modo de reinar no reino mais prestigioso da Índia, não menos isto sublinha o desejo de uma continuidade bem estabelecida na linha tradicional da civilização indiana; e não será sintomático ver, mil e seiscentos anos mais tarde, a moderna União Indiana escolher como armas nacionais o célebre «pilar de Açoka» decorado com leões segurando a Roda da Lei, e encontrado em Sarnate?
O império gupta cresceu ainda sob Chandragupta II (cerca de 375-414), chamado «Sol do Heroísmo» (Vicramaditia), para o Oeste (Malva, Gujarate, Katiavar) e o Sul (para lá de Narbuda); teria, além disso, anexado a Bactriana a Noroeste, e Bengala a Leste. O seu reinado marca, sem dúvida, a época mais brilhante da literatura sânscrita clássica, representada por Kalidasa, cujo teatro está actualmente traduzido em todo o mundo. A arte plástica atinge então um extremo refinamento e uma notável unidade de estilo; um dos conjuntos mais preciosos desta época é constituído pelas pinturas murais com que os reis Vakatakas, vassalos de Chandragupta II (e parentes dele pelo casamento) dotaram os mosteiros budistas de Ajanta, no Maraxtra. (século V-VI). A tolerância religiosa é levada ao máximo, e permite a floração de todas as seitas. O budismo está maduro para um desenvolvimento filosófico que os dois mestres Asanga e Vasubandu representam (século VI ou V). O comércio atinge o seu máximo de intensidade nos mares do Sul, abrindo caminho a uma expansão ultramarina da cultura indiana, a tal ponto activa, que fará eclodir, nos séculos seguintes, as mais belas civilizações do solo indochinês e javanês.
No reinado de Kumaragupta I (cerca de 414-455), filho e sucessor de Chandragupta II, a dinastia atingiu o seu apogeu. Infelizmente, uma nova ameaça surgira nas fronteiras Noroeste do império: a dos Hunos. O filho de Kumaragupta, Skandagupta (455- -467?) conseguiu detê-los. Parece que, desde então, certa confusão reinou na família imperial, levando talvez a novo desmembramento territorial. Quando as hordas bárbaras, depois de atingirem uma força armada formidável, desembestaram pelo vale do Ganges, mais ou menos em 485, os Guptas não conseguiram sustar-lhes o avanço devastador, apesar dos actos pessoais de corajoso sacrifício.
Durante cinquenta anos, sucederam-se cenas incríveis; os mosteiros budistas, as universidades que eram a glória da civilização indiana foram arrasados, os religiosos perseguidos; as deportações e os morticínios foram aos milhares. O imperador Budagupta (475-494?) foi expulso do Malva, e os terríveis invasores, primeiramente chefiados por Toramana, depois pelo filho, o cruel Miirakula (cerca de 500-540) chegaram até Magada, acumulando ruínas e destroços na sua passagem. A dinastia dos Guptas contudo sobreviveu, mas tão diminuída que os seus príncipes não mais passaram de chefes de Estado locais. Enquanto os Guptas sofriam deste modo a perseguição dos bárbaros hunos, os reinos do Decão fortaleciam-se sem detença; especialmente os Palavas, na região tamul (Kanchipurão) - cujo rei Visnugopa é contemporâneo de Samudragupta -, e os Chaluquias ocidentais (Badami) que perpetuam no Maraxtra o impulso cultural e artístico dado pelos Vakatakas, especialmente em Ajanta. O enfraquecimento dos Gupta permitiu por outro lado aos estados do Norte e do centro consolidar o seu próprio poderio: entre outros, o de Valabi no Oeste (Katiavar, e região de Sura e de Broach) e o de Tanesvar, situado na extremidade ocidental do Dabe, de que Kanauje se tornou a capital, sempre ardentemente cobiçada.
Coube a um príncipe de Tanesvar, Harcha (605-647) reagrupar a Índia do Norte e do centro sob um domínio único, pela última vez, antes da época medieval. A sua personalidade é mais bem conhecida do que a dos outros soberanos indianos, graças às narrativas que o peregrino chinês Hiuan-tsang nos deixou. Está de resto completamente na linha tradicional da Índia: eclético e tolerante no plano religioso, protector da cultura espiritual, e possivelmente o autor de várias peças de teatro e de dois hinos budistas de grande perfeição. Bana, o último, no tempo, dos romancistas sâncritos, era poeta da corte dele, seu favorito e seu bardo. No campo administrativo, Harcha perpetua a tradição de Açoka, assegurando desse modo a continuidade da civilização indiana sem interrupção, desde os princípios da sua história. Por efémero que tenha sido - uns quarenta anos - este último ressurgimento político e cultural (antes do afundamento que lhe sucederá) não menos garantiu a sobrevivência da brilhante época dos Guptas, não só através da Índia inteira, como ainda nas regiões ultramarinas, onde o estilo gupta teve prolongadas ressonâncias. Harcha manteve, com sucesso, as relações diplomáticas dos seus predecessores, com a China e a Ásia central; monges estrangeiros vieram à Índia visitar os lugares santos do budismo, e instruir-se ou ensinar nas universidades reconstruídas após a passagem dos Hunos. O comércio retornou à sua actividade. Em resumo, o engrandecimento da Índia imperial estava restaurado.
Sê-lo-ia por pouco tempo: logo após a morte de Harcha, o seu império foi desmantelado desta vez para sempre. Reinou a anarquia. Voltara-se uma página: eis porque o nosso exame da vida quotidiana da Índia antiga se detém por cerca de 650. Não que a civilização indiana tenha sido interrompida com o golpe; mas porque a ausência de um poder central não permite já falar de uma única Índia: a história passa aos planos locais, e poderá dizer-se daí em diante, «as Índias».
Todavia, a sociedade conserva o carácter que lhe era peculiar havia mais de um milénio: se examinarmos documentos respeitantes à época Sunga, à Gupta, ou à Idade Média, encontra-se a mesma base feudal, a mesma divisão por castas e por corporações, os mesmos rituais domésticos. As diferenças dizem respeito, sobretudo, às modas de vestuário, alguns costumes populares, e às modalidades religiosas e legislativas. O resto permanecerá na linha tradicional: a pessoa do rei, a pompa que o rodeia, os seus deveres ou os seus prazeres, a descrição da capital, seja ela qual for, a mentalidade dos indivíduos, parecem idênticos aos do tempo antigo. E como haveria de ser de outro modo, se as famílias ortodoxas do bramanismo vivem no século XX, apoiadas em princípios que foram os dos antepassados desde tempos imemoriais? Longe de deverem ser considerados como arcaicos, estes princípios mostraram-se a maior garantia da perenidade da civilização indiana, apesar das vicissitudes a que, em seguida, foi submetida.

in Auboyer, J. A Vida Cotidiana na Índia Antiga. Lisboa: Livros do Brasil, s/d


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